março 07, 2010

Hoje

Mais jazz que rock'n'roll
Mais chá que coca-cola
Mais chocolate que amor.

março 06, 2010


Sim não
Mas pode ser que seja de repente
À minha frente, bem na tua frente
Tudo muito rente, quente
Sente o drama
É tudo ser assim tão envolvente, amor
É tudo ser assim tão de repente, tente agora
Olho no olho, dente no dente
Lentamente, é nessa hora a hora
Que eu desejo o fim o fim de tudo
É no começo, e o sol poente
A coisa fria e o fogo novamente
É tudo não mais que de repente
Quente, quente, quente
Sente...


(Torquato Neto)

fevereiro 25, 2010




A coleção de Madalena


Com cuidado, Madalena tenta colecionar hojes. São como vagalumes (têm lampadazinhas também), porém comportam-se mal, fogem, desanimam os que tentam fixá-los. Tanta rebeldia deve-se à sua natureza de efeméride, seu perfil psicológico de dente-de-leão e um certo charme de floco ou de gota. Madalena luta, apanha-os, fica enfurecida quando um deles lhe escapa, tenta pegar o fujão pela asa e descobre que não se apanha o intangível com humildes dedos de carne. Tenta fotografá-los, mas eles são tímidos e desaparecem como um fio de fumaça diante da câmera. Tão raros, tão lindos, tão rápidos! Madalena lamenta, especialmente quando perde um hoje bem bonito, diferente dos demais.

E quando acha que não tem mais jeito, um deles resolve, por capricho, resplandescer, exibir-se por um instante, um fogo vermelho a dançar no espaço-tempo, para em seguida transfigurar-se rapidamente em ontem. Quando tem sorte, Madalena surpreende um hoje tornar-se amanhã, e sorri, e espera que haja muitos amanhãs tão lindos quanto os hojes a voejar pelo jardim.

janeiro 23, 2010




Impossível, tão paradinhos, imóveis no amor frio e rápido dos insetos. Não se olham. Ficam bem quietos, sonhando com outras coisas, fazendo aquilo que tem que ser feito para logo poderem mudar de assunto, irem à missa ou tomarem o chá assim que desmancharem a beleza natural de sua posição e abandonarem um ao outro, como se não fosse nada, ora, que inconveniência!

Madalena imagina que isso é um grande momento em sua vida e calmamente ajoelha-se na calçada para ver melhor. Espanta-se com o aspecto sonhador que têm aqueles lacinhos amarelos, e com sua absoluta indiferença para com ela, Madalena, que observa indiscreta e quase não respira para não espantar o milagrezinho sedoso que ganhou de presente.

(tais presentes são só para os olhos de musgo de Madalena.)

outubro 26, 2009

O GOLEM

Houve uma época em que criei um golem. Busquei tratados, estudei os detalhes da operação. Tentei criar um golem e quis dar-lhe o dom da palavra. Pensei fazê-lo de argila vermelha e terracota, alto como o Davi de Michelangelo, forte como o Minotauro, e tão sábio quanto os mais elevados doutores de nosso tempo.

Fiz o monstro seguindo à risca os preceitos cabalísticos e os segredos que descobri em meus estudos, evitando cometer os mesmos erros daqueles que tentaram e falharam antes de mim. Coloquei em minha criação todo meu espírito, na tentativa de incutir na argila que moldava um pouco de minha própria personalidade e conhecimentos. Conversava com ele; assemelhava-se a um boneco tétrico, um espantalho esquecido em uma plantação abandonada há muito.

No término de minha obra - o sol queimava minha cabeça, meu corpo, à beira do rio, - estivesse alguém a me vigiar, veria uma invenção assombrosa: um gigante de músculos salientes, nu, mas sem sexo, e com um olhar que nada dizia. Efetuei as conjurações para incutir-lhe o dom da fala, o qual dependia exclusivamente do Mistério. Ao término, escrevi em sua testa a palavra secreta, dando-lhe vida.

Mas, um escravo não pode ser sábio, e isso pode ser entendido de várias maneiras. A natureza do golem o dominou e ele me agarrou fortemente. Quando eu ordenei que me soltasse, disse: "não posso, nasci pelas mãos de um homem mau e tolo". Tendo dito isto (e rejubilei-me, em meio ao desespero, com o fato de ter conseguido fazê-lo falar), atirou-me a um canto e pôs-se a juntar argila com as mãos imensas, tentando moldar um semelhante.


Precisou de mim para escrever a palavra secreta na testa do novo golem que criara.

...

maio 31, 2009

...

Você sabe como as coisas acontecem, como sempre aconteceram. Mas com o tempo elas mudam, e até a lembrança, estática e fria, parece ganhar novas cores. Você bem sabe, ah, como sabe: basta uma canção e pluft, aconteceu. Os fatos novos ligados às lembranças não são apenas reflexos pobres, penso que são como novos poemas com as mesmas palavras, sim, talvez seja isso mesmo.

No calor do instante passado, no calor dos diálogos do presente, no calor das aventuras do futuro, as coisas navegam, atemporais, imunes à mera questão tempo-espaço, deslizando com doçura e uma leve sombra de angústia. Eu as deixo navegar e não quero dar a elas uma finalidade prática, aliás, prefiro, por ora, esquecer as finalidades, que nada são além de finais previstos, anunciados. Eu nem sempre gosto de fins; prefiro, inteligentemente, os recomeços.

Dentro de mim mora um anjo que constantemente escandalizo, como disse alguém. Assumo minha culpa, como um fato consumado. A alma da mulher, nenhum homem seria capaz de explicar, mas todo mundo entende o conceito, são as nuances, os tais caminhos, trilhazinhas morro acima, morro abaixo. Um rio repleto de afluentes, tantos que não é possível mapeá-los. Não há geografia possível, não há mapas confiáveis.

Partindo deste princípio - o da impossibilidade - ,resta o gosto pela aventura, a superação do medo do que é (des)conhecido, o desejo de alcançar um momento epifânico que entrará para a história, de resgatar um mundo quase perdido, chegar em Atlântida e lá assistir aos desfiles de sereias, os cortejos dos deuses antigos, saborear os manjares... Querer por querer, amar por amar, descobrir-se mudo, atado, subjugado, correr riscos enormes, saber das dores e ainda assim, abrir feridas e ainda assim.

Afinal, as feridas que se abrem nunca estiveram realmente cicatrizadas.

Existe (certamente) um "aí" onde as coisas passadas habitam. A questão "onde" nos impulsiona maldosamente. E "como", é o que temos que descobrir ao atingirmos o ponto, e somos nós que o faremos real. Há a esperança, palavrinha demoníaca. Há uma embriaguez que desperta o desejo. Há música, há um festim de Dioniso. Eis a fórmula do que quero, realmente, dizer.

(há o diabo dançando be-bop, o sangue quente, a respiração difícil, wine and roses, cabeça cheia de palavras e de fotografias)

E é assim que as coisas acontecem por aqui. A ausência se torna presença, as velhas frases ganham força e significados inúmeros. Não deveria ser assim, mas assim é. Muitas coisas não deveriam ser como são, e no entanto.


...

maio 10, 2009

Uma borboleta branca

Com olhos úmidos, o velho observava o nada, parado e frio como um peixe. Havia certa palidez nas coisas, no verde das folhas nas árvores, na parede cinzenta da igreja, no rosto dos passantes ocasionais, nas asas sujas das pombas que bicavam o chão, rodando pela praça à cata de comida. Um ou outro pássaro cantando bem longe, de tempos em tempos. O velho, e o nada, o céu encardido de tristeza, tão morto.

Uma angústia funda, uma ferroada, afligia o velho naquele instante. A solidão, a grande distância intransponível, independente da vontade. Quase não podia suportar. Ao redor dele, a mesma igreja, o mesmo sino soando a cada hora, os mesmos idosos solitários. Tarde de domingo.

Com o final do dia, as pombas recolhiam-se, fartas. A luz abandonava devagar o céu. Outros velhos levantavam-se e iam, sabe-se lá para onde, ou para quê. Em pouco tempo não havia ninguém na praça além do velho de olhos úmidos. Ninguém, nada, o fim de todas as coisas enquanto o sino anunciava tristemente as seis horas.

Quando as badaladas cessaram, e quando a última delas terminou de ecoar, o velho estava mais só do que jamais estivera. Chorou sem lágrimas, gemeu sem palavras, aprisionado nas dobras do tempo, incapaz de qualquer idéia além da desesperança, sentindo nas costas o sopro gelado do vento enquanto as coisas todas fugiam da noite que se aproximava.

Então, ele sentiu uma vibração tímida no ar, um deslocamento no espaço, quase como se não fosse real. Abriu bem os olhos: era uma borboleta branca, pequena e tonta, que voejava sozinha pela praça. Talvez tenha sido atraída pelo calor do corpo do velho; começou a dar voltas em torno dele, atrapalhada, como se fosse setembro. O velho ficou espantado em ver aquela borboleta solitária, dançando inutilmente. E dela não se desprendia nenhum som, nem mesmo do bater de suas asas.

O velho chegou a gostar. Achou-a até bonita. Depois teve raiva, porque ficou pensando que talvez – somente talvez – ela poderia ser a responsável por aquela quietude pesada e obscura que o rodeava. Em um ser tão pequeno habitaria uma síntese grandiosa do espaço-tempo, como se todos os sons do universo convergissem para ela, que os guardaria, sem saber, no mistério de sua aparição. Era um princípio, e era também um fim, ainda que fosse apenas uma borboleta branca e tola. Um dia, por certo, não haveria mais ninguém além dela, sobrevoando alegremente o fim do mundo.

Com um gesto lento, o velho estendeu a mão. A borboleta pousou com suavidade sobre a carne que lhe era oferecida de modo tão gentil. Com a outra mão, o velho cercou a borboleta. Apanhou-a. Ela permaneceu imóvel em seu pavor. Ele olhou-a de perto, muito de perto. Cheirou-a, sentiu seu peso que era nada, viu manchas amarelas, minúsculas, em suas asas brancas. E enfiou-a na boca. Mastigou-a, os olhos úmidos, o rosto ferido de lágrimas. Desse modo, descoberto o verdadeiro sabor do silêncio – que era de pó e pedra - , o velho levantou-se e partiu. Para onde, e para quê, não se sabe.

maio 09, 2009

TRADUÇÃO DE "LE PAPILLON"

Era quase meia-noite. Pela janela, Simone olhava a lua, as estrelas, os planetas do universo. Não havia nenhum ruído. De repente, ela viu uma grande mariposa voando na noite negra. A mariposa era marrom e amarela e tinha os olhos cinzentos, muito assustadores. Essa súbita surpresa fez Simone tremer...De repente, a mariposa disse: "Não sei porque as pessoas ficam olhando o céu à noite. Não há nada de interessante para ver aqui". Simone ficou em silêncio durante as palavras da mariposa que, muito rapidamente, voou através da noite. Ela, então, fechou a janela. Não pôde dormir naquela noite e nem nas semanas seguintes.
O tempo é um animal selvagem que tudo come. O tempo devorou meus dias, devora-me agora enquanto escrevo, devora você, enquanto lê. O tempo começa a comer meu fígado pela manhã quando desperto, transformando-me em Prometeu enquanto carrego minha pasta de expedientes, enquanto sento-me à mesa do escritório, enquanto desejo estupidamente que os ponteiros do relógio andem mais depressa. O tempo à tarde torna-me Sísifo empurrando infinitas pedras. O tempo devora o sentido das coisas, devora a beleza de um entardecer, mastiga minhas esperanças para depois cuspi-las como um alimento de sabor desagradável, engole com grande prazer as lamentações, a falta de direção cotidiana, a chegada da noite, e a madrugada é recebida com festa pelo tempo, que vê a si mesmo consumir, enquanto visito a morte atrás de meus olhos fechados.

O tempo é o cão das Parcas.

abril 26, 2009

ALFABETA

Movimentos de insetos no meu teto, brincando com as conchas do lustre suspenso. Esgueiram-se próximos à lâmpada branca e perdem suas asinhas de seda. Rastejam de ponta-cabeça e nos olham de cabeça-ponta, na certa não entendendo o que fazem essas criaturas cor-de-rosa peludas castanhas caminhando onde não se deve, o que comem tais infelizes, tamanhas porcarias, e que tanto emitem sons sem precisar. Chamam-se criaturas alfa, as de ponta-cabeça, e criaturas beta, as de cabeça-ponta. As alfa sofrem sem ruído. As beta mastigam coisas verdes. As alfa mastigam; as betas regurgitam. As alfa planejam passeios, e as betas planejam ficar planejando. As alfa, somente, pousam. As beta, ao contrário, agitam-se inutilmente. A vidinha alfa é um mascar de chicletes na vidona beta. A vidinha beta é um sorriso cínico na vidona alfa. Tremelicam as perninhas alfa, encapotam-se os membros beta. Por tudo isso não podem se encontrar, alfa e beta, tanto melhor que não se encontrem jamais e fique cada uma em seu poleiro, curtindo a vista, chamando uma pizza ou ignorando a ponta-cabeça e a cabeça-ponta.

abril 25, 2009

Um grande sertão dentro da gente

Todos ocupam-se do tempo; prefiro ocupar-me do espaço. O trabalho é o mesmo, as mesmas dores, e talvez, não sei, talvez seja a mesma coisa em tudo. Os longes no espaço se misturam aos longes do tempo. As distâncias, os buracos profundos e largos entre pessoas, coisas, fatos. Lonjuras que poderiam ser transpostas, mas não o são, porque o abismo, tão grande e perigoso, nos deixa imóveis no lugar onde estamos. Não vencemos o espaço. Tampouco o tempo, que segue comendo a vida, comendo a vida, comendo a vida. Para quê tanta corrida? É de se rir de tudo. Um dia nem mesmo este planeta vai sobrar, porque sabemos, o Sol vai explodir. Que importa tanta arte, tanto amor? Nada vai restar. Que importa almoçar bem, jantar bem, cuidar da saúde, criar animais, beber água de chuva? Um nada de importância, uma total impotência que paralisaria se não fôssemos teimosos, insistentes, renitentes, céticos, horrorosos, predadores, vazios e vagos d’alma, embusteiros, ladrões. Que apego, que pavor indescritível no fundo dos olhos! Tempo é ir e nunca voltar. Espaço é ficar. Chover no mesmo lugar.

Um sertão dentro da gente, um grande sertão cheio de caminhos que fazemos sozinhos, as outras gentes que só fazem sombra, no final a curva e só um Eu enorme a remar, no seco, no sol invernal. Aquele silêncio morno, eco do coração, a nos mostrar o que não há - o que não pode haver. Bate fundo na memória, esta sala atulhada de trastes, de cerimônias, e mesmo assim parada e triste lá dentro, como se ninguém a houvesse visitado. Espaço: longe. Tempo: longe. Tudo: espaço e tempo. Cordas rompidas. Tempos remotos, dizemos. É lá atrás. Indiscutivelmente lá atrás. Lugares remotos, dizemos: também lá atrás? Nem sempre. Ao lado. Porém inacessível, como o lá atrás do tempo remoto, esse moço de chapéu e luvas que surge no horizonte ao contrário quando partimos e esquecemos.

A margem de cá do rio é sempre tão clara e confusa, tão dia, tão viva. Deixemos a margem oposta se esconder por entre as brumas do entardecer, o lusco-fusco das seis, a treva faminta da noite. Deixemos, guardemos, que o moço de chapéu virá, em uma barca, buscar o que largamos por aí, lá atrás, nas profundas do passado, nos calendários do antes. O diabo, Ele-mesmo, habita outro lugar, com os medos e as coisas que chamamos de nomes feios – terceira margem. Porque sempre existe uma terceira margem, e nela sempre existe um diabo, nem tão feio, nem tão bonito quanto pintam.

março 28, 2009

LE PAPILLON

Il était presque minuit. Par La fenêtre, Simone regardait la lune, les étoiles, les planètes de l’univers. Il n’y avait aucun bruit. Tout à coup, elle a regardé un grand papillon en train de voler dans la nuit noire. Le papillon était marron et jaune, et il avait les yeux gris, très effrayant. Cette soudaine surprise a fait Simone frémir... Tout à coup, le papillon a dit : « Je ne sais pas pourquoi les gens restent à regarder le ciel la nuit. Il n’y a rien d’intéressant pour voir ici ! ». Simone est restée en silence pendant les mots du papillon que, très rapidement, a volé à travers de la nuit. Simone, donc, a fermé la fenêtre. Elle n’a pas pu dormir pendant cette nuit-là et les semaines suivantes.

março 30, 2008

Underground

A arte existe para que a verdade não nos destrua.
(Nietzsche)


Hoje: excessos por todos os lados. Informação, miséria, dor, pusilanimidade. Escandalosas pilhas de dinheiro. O ar é sujo, quase palpável. Submundos industriais, dejetos, (pós-pós)modernidade. Padrões histéricos de beleza-comportamento-vestimenta-arte-certo-errado. Subjugados por um país-império, a gloriosa pátria do over-sized. Comendo lixo. Engolindo lágrimas. Sobrevivendo, calando, morrendo. Bombas sob nossos pés, o risco iminente, o ódio em nome de um deus qualquer. Um dia é da vacina, o outro é da doença. Bunkers, milagres, televisão. Memória em discos cada vez menores e mais potentes. Tudo tão rápido. E nós, pessoas, morrendo afogadas – o ar nos falta. Hoje: o mundo não é um bom lugar para se viver. Hoje: autodestruição. Hoje: temos tudo, e nada temos.

Hoje: maravilhas do cotidiano informatizado. Velocidade e ação. Tudo ao alcance de um clique, tudo o que você precisar, de CDs e games a amor e compaixão. Todos podemos ser artistas. O mundo é a aldeia global pretendida (ou prevista) por McLuhan. Todos estão de mãos dadas ao redor da Grande Rede. É fácil saber das coisas agora. Assistimos a nossos queridos amigos distantes e com eles nos comunicamos em tempo – tempo!- real. Tudo tão rápido. Podemos inventar moda, podemos cantar pela rua, podemos sacar dinheiro a qualquer horário. Muitos de nós, seres humanos, são livres para casar-se com quem quiserem, são livres para escolher seus governantes, são livres para decidirem sobre ter ou não ter filhos, livres para serem gays, para usarem drogas, para lerem os livros que bem entenderem. Hoje: muitos querem de verdade salvar o planeta da morte. Hoje: a Era do Cérebro. Hoje: 2008.

Hoje: é preciso, mais do que nunca, gritar.

dezembro 12, 2007

O riso da estátua

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha tímida memória mal e mal abarca? - Jorge Luis Borges, “O Aleph”

De vez em quando, esquadrinhando pensamentos antigos e fortuitos, encontramos algumas lembranças que, à semelhança de trastes atirados a um canto do porão, permanecem pousadas nos recônditos da mente à espera de serem descobertas, sua poeira sacudida, umas mãos que as trarão à luz para aplicar-lhes a esquecida finalidade. Em silêncio, aguardam sob grossas camadas de pó, camadas estas que lhes conferem um ar de inutilidade, de esvaziamento da função original. É um engano em que corriqueiramente caímos; nada está perdido, nada é morto, e tudo é por princípio perigoso e instigante.

Pois um dia, possivelmente uma tarde velha dessas de quietude – estou quase certa de que era aquela hora sonolenta em que o mundo dorme sua siesta - , ingressei nos mistérios que moram nas estátuas. Eram quase felizes aqueles tempos, não fosse uma certa melancolia azulada, latente e contínua que, acredito, seja própria a todas as crianças. Quase felizes; as camadas mais profundas da psique, os desdobramentos, a multiplicidade da vida interior, tudo isso ia germinando e se formando dolorosamente em meu espírito. Estranho: eu sabia que a vida era assim mesmo e que dali para diante deveria ser ainda mais um eterno quase, sem resposta possível, sem revelação de completa felicidade que não estivesse ligeiramente maculada pelo azul desmaiado das minhas primeiras e sombrias agitações.

Olhando de longe, era uma estátua comum, uma espécie de querubim longilíneo, branco, contrastando com o vermelho dos ladrilhos rústicos do jardim que não era um jardim forrado de grama e sim coberto por ladrilhos vermelho-terra, cacos irregulares emendados com relativa harmonia e nenhum bom gosto. A casa era azul – sempre o azul – e quieta, dessas que não parecem ser habitadas. A estátua exibia-se impudicamente, sob vestes que mal a recobriam, afrontando a normalidade das casas sem estátua. Por que uma estátua, eu queria sempre saber. Por que colocaram uma estátua no jardim?, perguntava-me. Ficava ali, a uma distância segura. Jamais voltava-me, jamais olhava para trás, porque tinha muito medo de que a estátua se mexesse. Por não olhá-la mais que o necessário, ficava com a sensação de ter os olhos de pedra colados em minha nuca, e isso era não só assustador como, de certa forma, divertido e emocionante. Apertava o passo, sem jamais ultrapassar os passos do adulto que me acompanhava. Uma vontade incrível de voltar a cabeça... E sublinhar com os sentidos minha certeza de que a estátua estaria diferente, então.

Pois um dia entrei no jardim. Não sei com quem, nem para quê. O certo é que entrei e logo postei-me, admirada, diante da estátua. O que primeiro me surpreendeu foi sua cor; era um branco cinzento, poroso, típico do gesso. Havia pó nas dobras mais horizontais, e a estátua, por conta disso, desprendia um cheiro que eu associava aos dias de chuva pouco antes de chover. Toquei-a; era gelada, muito gelada, mas isso já era esperado. Minha segunda e maior surpresa foi o que vi no rosto. Os olhos eram vazios, dois globos brancos aprisionados em uma face sem dono. Olhos fantasmagóricos e estupidamente vazios, olhos que nada refletiam, que nada viam. Só que havia nesse rosto também um sorriso: a estátua sorria exibindo os dentes bem desenhados e retos, vincos no interior da boca, um sorriso fechado que acabou por matar a impressão de que os olhos nada viam. Eles viam, porque havia o sorriso.

Eu jamais vira uma estátua sorrindo. Assustei-me; o riso era silencioso e mórbido, estático e frio. Tudo estava centrado naquele riso acinzentado e duro, como se fosse então uma porta, a única porta para que eu pudesse enxergar todo o restante da estátua, todo o restante das coisas ao redor, todo o restante do mundo e depois me voltasse inteiramente para mim mesma e meu tamanho de criança, meus pensamentos de criança, e com que rapidez isso ocorreu! Foi vertiginosa essa fuga, essa estranha escapada dos meus sentidos, o deslocamento físico que me levou a ficar parada, muito parada, deixando-me atravessar pelas sensações e pelos registros da lembrança que jamais se apagou. Vi flores nas mãos dançarinas da estátua. Vi o passado, o presente e o futuro, sua alma aprisionada em um corpo de gesso, sempre a prisão branca e suja, os céus ficaram escuros de tempestade diante de meus olhos.

Era uma estátua, por princípio, má. Seu riso continha algo de muito obscuro, um saber secreto, uma vida oculta e rica em acontecimentos que, naquele momento, estavam congelados sob camadas de massa endurecida. Por que a sensação de solidão? Por que a idéia de ter sido abandonada naquele jardim estranho, diante da estátua? Tudo se calou enquanto a estátua chocava-se contra o céu escuro de tempestade. Se não fosse o riso... O riso, a qualidade do mal, a expressão de zombaria. Não havia naquele rosto nada das expressões etéreas das estátuas de cemitério. Nada do apelo infantil dos anjinhos gorduchos das gravuras. Nada de placidez, nada de paz imortal. Estava diante de uma estátua repleta de idéias travessas, de planos indecifráveis para quando viesse a noite.

Depois de vê-la bem, e depois de sair daquela casa, ficou-me a memória e seus pertences. Ficou a impressão de medo em mares calmos, o espírito sempre a deslizar por águas mornas, e estas águas mornas sempre a um passo de tornarem-se frias e revoltas. Ficou a iminência de qualquer coisa, eu na pontinha dos pés diante de um grande precipício, o qual imaginava marrom, imaginar fazia minhas pernas doerem. Vou cair? Em meus sonhos era a estátua que me derrubava, não porque estivesse próxima a mim, e sim por que eu a podia avistar do outro lado do precipício, ou lá no fundo, imóvel e com seu sorriso ainda maior do que era na realidade. Chamava-me com voz melíflua e doce, a serpente que hipnotiza o pássaro. Chamava-me sem falar. Por toda a vida tem me chamado sem falar.

dezembro 02, 2007

UBU

Revista literária eletrônica. Tem texto do meu livro, lá. Visitem:

http://revistaubu.blogspot.com/

"A Revista UBU é uma iniciativa do TERRA DOS ANTOLHOS e tem a pretensão de se colocar entre as maiores revistas literárias do planeta. No entanto, devido ao pouco tempo de seu editor não sabe nem mesmo se conseguirá terminar os sete números previstos. Serão abordados sete escritores: Alfred Jarry, POE, Baudelaire, André Breton, Aragon, Cortázar e Borges, e cada um deles ganhará um dossiê com colagens de textos e imagens. Textos acadêmicos sobre os autores citados serão bem-vindos, pois o editor aqui postará apenas materiais livres de direito autoral encontrados na internet. Os textos serão publicados em suas línguas originais, não podendo o editor, infelizmente, traduzi-los. Isso tomaria um tempo extraordinário. A revista contará também com uma coluna mensal intitulada Cesar-Antichrist (uma peça escrita por Jarry) para a qual serão convidados os mais audaciosos. Por fim, vale a pena citar que seu formato será blogspot e por isso não parecerá, num primeiro momento ou talvez nunca, com uma revista profissional tipo a Cronópios. No entanto, acredita este humilde editor que a iniciativa poderá render ao menos bons textos. Estamos quase abertos. Para quem quiser publicar algum texto literário ou crítico, o endereço de email é alex.br@pop.com.br, terradosantolhos@gmail.com."

novembro 18, 2007

Três meninos

São três garotos idiotizados caminhando pela avenida. Lembram os três ratos cegos, com um quê de sordidez. Olham para o chão e parecem trigêmeos, frutos de uma gestação doente, talvez miserável e fraca. Caminham com uma segurança de quem é aleijão e tem que aprender a cuidar de si, andar, comer, falar, ir ao banco, lidar com a troça alheia, com o desprezo dos saudáveis, com o riso e o espanto das crianças. Estão dolorosamente seguros por um cruel senso de sobrevivência – a prova maior de que Deus é mau.

Também eles são só crianças, doze anos, treze, mas podem ser mais velhos, um ligeiramente maior do que o outro, e estão sempre juntos. Passam todos os dias no mesmo horário – ou serei eu que estou sempre no mesmo lugar, na exata hora em que aqueles três meninos passam com suas sobrancelhas grossas e unidas e os seus cabelos iguais?

Primeiro vi os rostos e depois o olhar para baixo, a cabeça inclinada em um ângulo artificial, pendendo suavemente. Hoje os ouvi falar, mas não entendi uma palavra porque só falam entre si. Isso porque têm a mesma sina, além da mesma origem. A pele deles é manchada como se carregassem vermes; a coluna, arqueada como se andassem com o peso de se refletirem todo o tempo, um morando no interior das deficiências do outro para sempre. Parece improvável que se separem algum dia. Vivem idênticos e morrerão idênticos, talvez no mesmo desastre de trem, ou padecendo da mesma enfermidade. O caso é que não posso escapar da observação. Em um primeiro momento parecem ser hostis; depois, são apenas meninos tortos e, no instante seguinte, voltam a ser hostis – por causa das sobrancelhas unidas, do erro três vezes repetido, o mesmo erro, no mesmo lugar, no mesmo ovo, no mesmo ventre da mesma mulher. Cabeças pendendo amarelas. Os cabelos também são os mesmos, escuros e foscos, cortados por mãos muito inábeis...Como se eles não precisassem ficar bonitos porque nunca serão bonitos e retos, coluna no lugar, olhos crucificados no horizonte, no caminho que seguem todos os dias, não se sabe para onde vão, nem o que levam nos bolsos sujos das calças de malha...

Um deles veste a camisa de um time de futebol, mas tenho certeza de que ele não torce para esse time, e nem acredita nele. Todos rotos, manchas marrons no peito e o amarelo da pele manchada de vermes. São meninos delgados que andam em trio olhando para o cuspe negro, os papéis e os vestígios de droga e de misérrima solidão.

Ofendem a minha vista, os três meninos reféns dos vermes. Apáticos e de olhos fundos, íris nadando em um globo estourado em veias azuis, antigas veias, antiga esclerótica amarelenta e endurecida pelo que olham – nunca levantam a cabeça, porque não podem ou porque não há nada para se ver além do buraco na calçada, dos sapatos melados de barro e tristeza, da água empoçada e das fezes dos cães que também seguem olhando para o chão.

novembro 06, 2007

Façamos de conta

Façamos de conta que foi só um vento, desses que cortam a pele no inverno ou anunciam tempestades no verão. Façamos de conta e esqueçamos, pensemos que talvez tenha sido só um sonho e que este sonho tenha sido afugentado com a primeira espreguiçada, ainda na cama quente. Deixemos que o tempo aos poucos soterre essa lembrança e que a coloque em seu devido lugar, em alguma das gavetas do arquivo, friazinha e acomodada com cuidado atrás de uma papeleta com seu nome-data-grau de importância.

Vamos ver quantos anos a lembrança perdurará antes de se desfazer em centenas de pedacinhos amarelentos; veremos se haverá alguém ainda interessado em dar uma olhada nela, em trazê-la para fora dos arquivos, espanar o pó e afugentar as traças, botá-la na janela para tomar um pouco de sol. Veremos se vai envelhecer, se vai perder a cor, murchar como uma rosa no meio de um livro. Prestemos atenção para o que acontece com essa lembrança: se reluz um pouquinho, se vibra para depois cair no chão abandonada, ou se apenas fica quieta esperando sua hora passar.

Façamos de conta que nada disso foi verdade e que a lembrança é somente a asa esquerda de um engano feliz. Desse modo podemos seguir incólumes, os olhos secos e um sorriso rasgado nos lábios, em frente, ignorando qualquer dor que porventura nasça, porque a dor é a asa direita. Fechemos as gavetas. Só as abriremos na próxima primavera.

outubro 31, 2007

[Sem título]

É noite, e meu coração não me permite dormir.
A chuva mais uma vez lava a cidade e graciosamente perdoa seus pecados.
É noite e a cidade dos espelhos fenece sob o silêncio após a grande confusão:
O dia em que o sol brilhou, resplandesceu e tingiu de dourado cada centímetro de aço polido.
O dia em que o aço polido tornou-se tão musical quanto sinos de vidro - e soou no ar tépido de verão.
O dia em que a mornidão do vento trouxe consigo a languidez oriental dos gatos.
O dia em que os gatos comeram morcegos, e nada mais.
O dia em que os gatos, o dia em que as botas, o dia em que os espelhos
Retiniram todos em festa, comemorando a cidade em chamas, porque houveram chamas e houve confusão na cidade dos espelhos.
Quando chegou o final do dia, foi revelada enfim a verdade: os espelhos mentem ao contrário.
(Mas a questão, puramente estética e dialética, foi deixada de lado: a cidade é uma festa e os rojões confundem-se com o barulho dos sinos de vidro.)
O sol não se põe.

***

Alguém caminha pela cidade com a certeza de que a possui: ela, a cidade, uma babilônia apocalíptica a seduzir aqueles que em alguma ocasião puderam entrever, por momentos, um de seus pequenos pedaços brancos e pulsantes de concreto.

***

Subitamente, o sol se põe - porque precisa.

***

Então, a cidade funciona como um dia após o outro, deixando-se ocultar sob grossos cobertores de aleivosias e mediocridades para despertar em seguida, mais bela e livre do que antes, sob os eternos auspícios do astro -rei.
A lua confunde o coração dos homens e turva-lhes a visão. De novo, o silêncio de vidro pintado, a textura de porcelana a correr pelos dedos, a língua e a boca secas: ânsia e desalento.


É noite, e de novo a cidade impura.



outubro 29, 2007

Coisas que acontecem (sim, acontecem coisas)

Tem coisa que começa sem que a gente note, tão devagar que só notamos que alguma coisa está acontecendo quando nos apontam, nos dizem com todas as letras “algo está acontecendo com você”, dedos preocupados e duros a nos mostrar na cara onde é que está o erro. Posto que dificilmente notemos a coisa quando nasce, bem escondida como os filhotes dos peixes em um aquário, não temos muita responsabilidade sobre ela. Penso que não existe nenhum outro momento mais irresponsável na vida de uma pessoa do que este no qual as coisas estão apenas começando.

Constantemente Rubens me dizia “olha, tem alguma coisa”, com aquele ar misterioso das pessoas que não são propriamente inteligentes e se deixam intrigar por banalidades. Quando Rubens ficava quieto por muito tempo eu sabia que lá vinha, ele carregava a expressão e soltava seu “olha...” que eu fingia não ouvir; dava de ombros e virava para o canto, tornava a dormir sem pensar em nada.

Mas um dia tive que prestar atenção ao que ele dizia, até me censurei por não prestar atenção quase nunca, mas naquele dia a lembrança de Rubens me dizendo “olha...” veio com força, como se fosse o cenário ideal para o que estava acontecendo, e eu enfim começava a notar que algo acontecia de fato. Apesar de ter finalmente notado, mantive o ceticismo, porque não era fácil aceitar que aquilo estivesse acontecendo e que fosse o prenúncio de algo maior, muito ruim.

Hoje, olhando para aquele dia, fica um pouco difícil saber exatamente por onde a coisa começou, mas fazendo um esforço de memória (porque Rubens não está e não pode me ajudar) acho que foi a janela batendo, uma ventania destas que antecedem tempestades. Foi, sim, a janela batendo, o barulho, nunca suportei barulho e por isso nem filhos nem bichos, meus nervos sensíveis e o barulho da janela me sacudiu, bem me lembro, estava bordando borboletas em uma toalha amarela e usava a linha azul para fazer uma asa.

Então, a janela bateu, me sacudindo, como já disse, e por certo este foi o começo e dali até o instante em que me pus a pensar no que Rubens dizia, “olha, tem alguma coisa”, parece que foram semanas ou meses mas não, essas peças que a cabeça da gente nos prega quando as coisas que acontecem são muito elásticas e cheias de razões ou de não-razões, não entendo direito porquê as coisas aconteceram mas elas tinham que acontecer porque aconteceram, entende? O tempo é o diabo, me perturba um pouco, não consigo situar, eu não andava olhando para o relógio naquela tarde da tempestade e então que diferença faz, se dias, anos, horas?

Sei que a chuva caiu forte, janeiro doze, recordo até do cheiro da água batendo na terra, mas não do horário, decerto à tarde porque no verão as tempestades acontecem à tarde. Sim, agora sei que sentia a coisa que iria acontecer, chegando de manso, sim, eu sabia, por que não dizer? Hoje sei que sabia, mas naquele momento não sabia que sabia, não sabia de nada porque mal conseguia enxergar meu bordado, uma angústia pesada subindo pela garganta e então foi que espetei a agulha do bordado no dedo, acho que este foi o segundo pedacinho do quebra-cabeça dos fatos que estavam para acontecer e nessa altura (hoje, só hoje sei) eram inevitáveis.

Nesse dia em especial Rubens não falara comigo a manhã toda e ficara consertando o carro na garagem. Eu entendia o porquê do silêncio; a noite anterior e a briga feia, eu também não estava de conversa, mas não era só isso que me subia pela garganta, não, havia outra coisa subindo, um pouco mais dolorosa. O caso é que permaneci no meu lugar bordando e não almoçamos, me fiz de morta e quando a janela bateu espetei o dedo na agulha e levantei-me do sofá para procurar um band-aid.

Sabe quando as coisas acontecem de uma vez? Foi assim depois no final daquela tarde, a chuva já tinha passado, Rubens com toda certeza ficara embaixo do carro, a garagem coberta, ouvindo o estalar das gotas sobre a cobertura metálica e pensando que algo, algo acontecia ou estava para acontecer. No final daquela tarde foi que as coisas finalmente aconteceram e Rubens só poderia estar se referindo a isso, porque não havia outra coisa e não houve, para Rubens não houve realmente mais nada depois daquilo.

Não achei o band-aid, mas encontrei uns objetos tão estranhos na gaveta dele que na hora não pensei em nada, acho que perdi os reflexos, a capacidade de reagir. Era estranho que eu não reagisse e voltasse para o sofá, o dedo embrulhado num pedaço de pano e o sangue que não parava de escorrer, que lugar mais sangrento é a ponta de um dedo jovem! Talvez por isso eu não saiba dizer no relógio quanto tempo se passou; porque fiquei preocupada com o meu dedo e toda a minha atenção se voltou para o sangue que ia manchando o pano, uma gotinha aqui, outra ali.

Não demorou muito, acho. Sou saudável e o sangue parou de escorrer, mas ficou uma dorzinha aguda, um incômodo que eu trataria de esquecer porque só agora me lembro dele, fazendo um esforço grande. Fiquei andando pela casa e abri as janelas, chovia horrores, afinal um calorão o dia todo, minha mão suava enquanto eu bordava as borboletas, disso me recordo bem porque a agulha escorregava a todo instante. Aquela dor que subia, tão diferente da dorzinha na ponta do dedo, ia agora avolumando-se, criando contornos, transformando-se em um monstro de bestiário a sacudir minha embarcação em algum oceano distante dali, como se eu tivesse deixado de existir para ser outra pessoa, alguém longe que navegava em uma embarcação e cujo medo ali no meu sofá transformava-se em um monstro a sacudir a embarcação correspondente da minha outra pessoa correspondente.

Senti meu rosto avermelhar e arder. Não parecia fazer sentido, e a asa da borboleta no pano amarelo a perder a forma, pouco se me dava se estava ficando torta, eu não era boa bordadeira, nunca fui. E por tudo isso acho que houve um plano, como se Deus ou alguém invisível estivesse desenhando esse mapa porque não parecia lógico que assim fosse. Mas as coisas acontecem sem que a gente possa prever, apenas porque precisam acontecer, porque são o próximo ato no espetáculo e o diretor desta peça é tremendamente severo com seus atores, então não teve jeito e saí da sala, atravessei a cozinha, invadi o quintal. A chuva caía inclemente, o cheiro bom da terra refrescada, um verdadeiro alívio.

Sempre gostei de tomar chuva, e há anos não fazia isso. Gostoso. Caminhei lentamente pela grama, as gotas fortes, pesadas, estalando nas minhas costas; subia um vapor da grama, das pedras do jardim, do carro. Rubens estava sob o carro, pude ver as pernas dele apenas, joelho e panturrilha. Eu sabia o que fazer ali, naquele instante houve como que uma ordem, o ponto no teatro a nos dar a deixa quando nos desconcentramos e acabamos nos perdendo no texto e na ação a seguir, o desconcerto peculiar logo emendado pelo acerto que nos acalma, tudo tão rápido que o público sequer nota, só nós os atores depois da peça enquanto fumamos um cigarro na coxia e rimos dos enganos cometidos durante o espetáculo.

“Rubens”, chamei, e meu marido resmungou debaixo do carro, fez um som que não pude definir. “Rubens, por favor, venha até aqui, preciso que você veja uma coisa”, eu pedi, e então ele começou a se mover para sair. A chuva caía forte, lembro-me claramente de que estava descalça, e Rubens também estava descalço, é certo que estava, disso eu sei porque Rubens de pôs de pé e ao dar os primeiros passos apressados escorregou na mancha de óleo que vazava do motor do carro inerte na garagem. Eu não me movi, e por isso digo que sempre há um diretor a nos guiar, não me movi enquanto olhava curiosa para saber se óleo de misturava com sangue. Não misturava; acho que porque a chuva ia lavando o sangue e o óleo ao mesmo tempo, lavando o grito que perdurou por um segundo apenas, as roupas de Rubens estavam coladas ao corpo e um filete de sangue escorria da sua cabeça para o gramado.

Fiquei olhando por muito tempo, e daí soube que não tinha culpa, as coisas são o que são, engraçado que Rubens soubesse disso antes mesmo da janela que bateu com a força do vento, o prenúncio da tempestade. Entrei em casa, tomei um banho quente, tornei a abrir a gaveta, depois a fechei, e agora só me recordo de um homem me dizendo que não havia nada dentro da gaveta, que não podia ser, não podia ser, e me olhava com olhos maus durante todo o tempo em que permaneci sendo interrogada, disso pouco me lembro além do fato de haver uma gaveta vazia e fechada em algum dia, e em algum dia também uma embarcação cruzando um oceano qualquer.

outubro 28, 2007

Certezas

Não seria a última lágrima, certo que estava a ponto de pedir perdão, humilhar-se, arrastar-se aos pés dela, proporcionar um espetáculo de auto-flagelação emocional, abandonando a honra, o amor a si mesmo, o orgulho. Certo que o faria, tão certo como as manhãs ao lado dela, como os almoços, os jantares, os cafés; certo como a realidade atroz de um tempo passado, encolhido nas dobras do espírito, acanhado, longe feito um horizonte ao contrário.

Tamanha dor exigia expiação.

Certa era a indiferença. Ela não lhe prestava atenção. Não o olhava, nem mesmo com o canto dos enormes olhos cor de terra. Não acenava, não sorria. Levava à boca miúda o garfo, aos lábios o copo. Espiava o vazio, distraída. Ajeitava o cabelo. Usava o guardanapo. Abria a bolsa, pegava notas. Levantava-se. Ia ao caixa. Pagava. Saía. Como era possível? Nada – ou menos.

Ele, naturalmente, sofria.

Quantas vezes levantara-se, pagara seu almoço apressado, e punha-se a segui-la pela tarde preguiçosa? Incontáveis. Ele abandonara os calendários, inúteis, desnecessários. Esperava. Quisera muitas vezes gritar. Desesperava. Tornava a esperar. Ia aos poucos desistindo. Ela entrava em um escritório. Ele plantava-se do lado de fora. Fumava alguns cigarros. As pernas doíam; ele, então, dava uma volta. Mas sempre retornava.

Cinco da tarde, ela saía do escritório. Rosto cansado. Abria a bolsa, apanhava um cigarro, acendia. Passava rapidamente, mas não tão rapidamente que não fosse possível a ele aspirar um pouco daquele perfume, quente e desmaiado. Ela entrava no café da esquina.

Ele entrava também. Como podia, a cadela, ignorá-lo assim?

Ela pedia o café cremoso, ficava a cismar, olhando o tempo, a rua. Descansando do dia de trabalho. Ele pedia um café. Ela acabava o café. Ele acabava o café. Ela saía. Ele saía.

Fria. Distante. Nada.

A cada novo dia, ele pensava que havia chegado o momento de desfazer aquele mal-estar, de quebrar o gelo que havia se estabelecido entre eles, de tentar dar a volta por cima, enganar o passado, implorar, pedir. Rasgar-se inteiro. E a cada final de tarde, ele a via entrar no ônibus e sufocava, no fundo do peito, um soluço de derrota.

Aquilo era preciso terminar. Era preciso, era preciso.

De volta ao ponto de partida. Certo que o faria.

Ela sentara-se, com seu prato. Meio dia e trinta e dois minutos. Ele aproximou-se. Ela o olhou, séria. Franziu de leve a testa delicada. Afastou dos olhos uma mecha de cabelo. Ele murmurou um pedido de desculpas. Deu as costas. Saiu do restaurante. Derrotado.

Lamentou não ter tido a coragem necessária. Lamentou e lamentou, e se sentiu pior que um cão de rua. Foi para casa. Não a esperaria hoje. Precisava colocar a mente em ordem, precisava de um plano. De tantas coisas precisava.

Não havia necessidade de um plano, afinal. Era apenas chegar e atirar na cara dela tudo aquilo pelo qual ela o fizera passar: o sofrimento, as angústias, as noites não dormidas, o aperto no estômago, o cansaço de olhar para ela, o castigo de não receber nenhuma atenção especial – como podia ser tão fria? – e, sobretudo, por fazê-lo sentir-se um imbecil. O orgulho de volta. Pedir perdão, arrastar-se, humilhar-se? Não.

Não mesmo.

Hora do almoço, dia seguinte, ele com os olhos vermelhos de choro e insônia, ela fresca, descansada, leve e serena. Injusto. Ele tentaria novamente, ou melhor: cumpriria o acordo feito consigo próprio. Desta vez, era certo, não haveria falhas.

Como no dia anterior, ela sentara-se à mesa com seu prato cheio, seu suco de laranja, pendurando a bolsa na cadeira. Manejava os talheres quando ele aproximou-se. Ela franziu a testa – de novo, mas com uma certa agudeza ausente no dia anterior – e abriu a boca. Ele não lhe deu tempo de falar. Começou. “Você não tem coração nem mesmo olha pra mim que fico te vigiando o dia todo esperando que tenha pelo menos algum respeito pelo que tivemos no passado que pelo menos não seja tão mal-educada que ao menos me desse uma chance de conversar de ser amável de consertar o que ficou quebrado você faz questão de ser assim orgulhosa mas esquece de quantas coisas fiz por você de quantas lágrimas e alegrias esquece de tudo com tanta facilidade realmente acho que você não merece ser amada por ninguém criatura insensível os cafés da manhã na cama e todo o resto e você que.”

Ela perdeu a cor. Franziu ainda mais a testa, crispou os olhos, tensa, violenta. Levantou-se. E disse, cheia de indignação:“Afinal de contas, quem-diabos-é-você? Fugiu do hospício, é?”.

Saiu sem pagar.

outubro 23, 2007

O dobre dos sinos

A doença não era novidade, há muito: apenas um modo de ser, uma invenção do corpo. Pregava os olhos avermelhados no teto, buscava sinais. Sempre a febre, acocorada em um canto do quarto, esperando o final da tarde, a luz partindo, o dia em fuga rápida. Havia um consolo somente, que era lembrar (espantoso que conseguisse) de um tempo anterior às febres e à morfina. Dias de verdade, afinal.

Como um sonho mal sonhado, vinham as sombras habitar o negrume entre o cérebro e os olhos, intermináveis. Coisas mortas como igrejas ou estradas distantes, mortas como pássaros que ninguém vê, como folhas, corações partidos, telefones mudos, tiros na cabeça. Uma lâmpada triste pende do teto e moscas copulam no fio. Do líquido amarelo-esverdeado que escorre do ânus sem cessar, desprende-se aquele cheiro. Nos escombros das horas, nada, e possivelmente nunca.

As sombras, o tempo passado. A véspera. Sua mente se enchia de sol e de novo havia incontáveis minutos a redesenhar, como estrelas, areia, gotas. Um rio a transpor, vento e sons, um tamborzinho esquecido no jardim, mãos sujas, borboletas azuis, aranhas fazendo teia, roupa no varal, beijo na boca, pau duro, tortas de limão, contas a pagar, o cartão de ponto, maus poemas, bons poemas, a janela emperrada, álcool, projetos abandonados, cigarros pós-coito, calendários, papéis e canetas, música, o limbo das coisas. Saudade? Sim. De qualquer evento, rosto, bobagem, cicatriz. Febre.

Merda.

De súbito, a cama, as feridas feias nas costas, as entranhas meio comidas pelo câncer: o hoje. Sentia nas pernas o líquido escorrendo. Para sempre. Era a dor. Pé ante pé, a mãe, velhíssima, entrou no quarto com um lenço tapando o nariz e a boca. Perguntou ao filho se queria algo. A voz abafada de lenço e de profunda tristeza.

- Morfina, mãe.
- Só isso?
- Só.

outubro 22, 2007

Partículas

Ensaio

Olhou melhor, ficou pensando: vou? Difícil resolver. Tanta coisa passando pela cabeça. O sol frio, o romantismo das tardes de maio. Vou? Aquela agitação interior, tão conhecida de outros tempos. É certo que tudo retorna, fatalmente. Cuspiu de lado. Cidade pontuada de cinza, uma solidão acre, mastigável. Vou? Não tinha muito tempo mais. Chutou uma pomba. A dor na boca do estômago. Lembrou: desgraça pouca é bobagem. As ruas fedem. Não distinguia rostos. Robert De Niro e Jodie Foster. Não podia ser tão complicado. Vou. Foda-se. Lábios rachados, sabor de vingança dormente. Pólvora nos dedos, pólvora no peito. Tudo vai à merda repentinamente. A morte é a única rota de fuga. Maio, no calendário. Estou indo cruzar meu caminho com o de outro homem como eu e fazer o destino acontecer – não é um pensamento engraçado? Existem coisas que pedem para serem feitas com absoluta urgência. Como, por exemplo, dobrar esquinas até encontrar o homem procurado e disparar contra ele seis tiros, sentir o silêncio do instante em que a barreira é ultrapassada, ouvir o tombo, assistir como se fosse um filme, tremer de medo, correr, guardar a arma quente dentro da calça. Essas coisas que realmente valem a pena quando se está certo, certíssimo.

Sujo

Pobre louca, dizem. Pobrezinha. Arrasta um corpo feio e magro na tarefa indigna da mendicância crônica. Dão-lhe moedas apressadas. Seguem tampando o nariz. Nas dobras das roupas imundas da mendiga, restos de antigamente. Parasitas, nódoas. Puxa os próprios cabelos, uma massa dura de fios escuros. Passa o poeta, e a chama em pensamento de monturo vivo. Passa o senhor guarda, gesticula para que saia do caminho. Passa a criança, tem medo da louca. Cloaca da cidade. Moleques atiram-lhe pedras, ela parece não se importar. É doida, dizem. Tanta coisa dizem por aí, estranho tipo de indiferença. Não é uma mulher, exatamente, diria alguém. Não é um ser humano, exatamente, diria um cínico qualquer. Passa o cão, fareja – e fica. Pelo menos ela tem um cão, dizem os transeuntes acabrunhados diante do quadro da miséria absoluta. Pelo menos, filosofa um sábio, pelo menos alguém a assistirá morrer, caso o animalzinho sobreviva à fome e ao posto de ‘cão de mendigo’. Não durará muito, é cheia de chagas, é velha e louca, em breve morrerá, pensam as pessoas que detestam incômodos. É podre por completo, murmuram todos.

[Quando os dias passam e as chuvas geladas do inverno chegam, ela finalmente morre, silenciosamente, sem um ai. O cão a fareja e uiva. É incrivelmente desgraçado agora.]

Resto


Não sobra muita coisa, apenas uma caixa de discos de vinil. Uma pena. Ele sentado na calçada com uma caixa de discos de vinil por companhia, que cena cretina. Pensa que é bom que não chova agora porque vão molhar meus discos, caralho. Pensa e pensa. Vai correr para onde? Resposta nada enigmática: você se fodeu. A retórica machuca, às vezes.

A barriga ronca, naturalmente, e tudo o que há na carteira é:
- um real e setenta e dois centavos
- uma foto meio amassada de uma garota grávida
- dois vales-transporte amarfanhados
- uma imagem de Santo Expedito
- um número de telefone (sem nome)
- um cartão telefônico (três créditos)

Um gato se aproxima e ganha uma carícia triste. Cláudio quer chorar. A vida nunca pareceu tão cheia de bosta quanto ali na calçada, sem casa, sem comida. Chuva filha da puta. Ele tira a blusa e cobre a caixa dos discos. Depois pensa melhor e corre com ela até o bar, senta-se nos degraus da entrada, a caixa do lado. Fica vendo a chuva cair de novo – há dias e dias que só chove. Tudo foi embora. A vitrola também. Puxa um disco da caixa, olha a capa, a barriga ronca sem dó. Ouve o barulho da criançada alheia a tudo, chapinhando nas enormes poças de água barrenta. A mãe no abrigo, o pai no abrigo, os irmãos no abrigo, mas ele – ele – não iria nem fodendo.

Entrou no bar, chegou junto ao orelhão:
- Reinaldo, tô indo pra sua casa, velho.
- Pra quê?
- Minha casa caiu, velho. Tô indo. Mas fica frio, vou arrumar um trampo, tem um camarada daqui da vila que me prometeu já uma parada aí. Então eu fico na tua casa uns dias só, daí saio fora, só pra eu ter onde dormir, né, e comer alguma coisa...
- Mas aqui, porra? Aqui você sabe, tem eu e mais cinco...
- Favor de irmão, Reinaldo, porra, vai negar isso pro teu irmãozinho, velho? Só uns dias, logo eu tô saindo fora, e você acha que eu vou querer ficar na tua casa pra sempre?
(silêncio)
- Beleza. Cola aí.
- Valeeeu, irmão!

Era alguma coisa. A chuva apertava. Cláudio pensava num bom prato de comida quente enquanto juntava a caixa de discos de vinil, a mochila com as roupas sobreviventes, a sacola de pertences, memórias. Era até que bastante coisa. Até sorriu, ficou tão feliz quanto alguém poderia ficar, tão feliz que sorriu grande, abertamente. Alguma esperança.

Lençóis
(Eu & Alexandre Beanes)

Se coloco meus lençóis no pequeno varal do amor
É para que sequem ao vento
Ou que molhem na brisa orvalhada da madrugada.
E hoje caio no esquecimento.

Deixo de lado todas as lições, abandono regras, confortos de salas conhecidas, de leitos camaradas. É quase como esquecer também do medo, sabê-lo distante, uma chama tremeluzindo do outro lado da minha vida e que não chega até mim porque não quero, porque não posso.

Abraço o que não entendo, arvoro-me na única certeza, que é a da queda iminente, sem pensar em fugir do destino, este monstro de luz e sombra que insiste em se colocar adiante, sempre à frente dos meus passos vacilantes. Pois hoje sou mulher que corre ao encontro dele, deixando para trás a menina que se agarra aos cobertores e anseia pela chegada do dia.

Olhando pela janela vejo a noite quieta, insondável. A alma do mundo em absoluto silêncio. Tudo à espera de me ver passar: as estrelas pararam de cair, as flores dormem nos quintais. Gatos deixam de amar nos telhados, cessam os lamentos felinos; cães não latem, homens não gritam, carros estacionam – a morte dos motores. Em suspenso, a respiração da vida. Só ouço meu coração, e este bate frágil, oculto, adormecendo.

Então sei o que preciso fazer. Sei, em cada centímetro do meu corpo. Conheço a missão sagrada do amor, e tanto a conheço que entendo, com perfeita clareza, cada minuto em que a vida me concede o silêncio: estou aqui, esta é a janela, mais adiante a existência.
Correspondência
(Eu & Gil Brandão)

Julho, 74
Como pode ver, cheguei vivo. Estamos distantes agora, e será uma bênção para mim não vê-la mais. Por favor, não me leve a mal: não é a indiferença que me move, mas sim o desejo que me escraviza, ainda. Pode dizer que fugi, e será verdade; mas nunca poderá dizer que escapei.

V.

Agosto, 74
Olá, como vai você? Terá recebido o cartão que mandei mês passado? Se não o recebeu, tanto melhor. Escrevo este para dizer que estou bem, que a cidade é muito interessante. As pessoas aqui são bonitas. Gostaria de poder dizer-lhe que não há, dentre as mulheres daqui, nenhuma que seja melhor do que você – mas não posso. Acho que finalmente estou esquecendo seu rosto, porque hoje pela manhã tentei me lembrar dele e os contornos desapareceram da minha mente.
V.

Setembro, 74
As flores chegaram, aos poucos, por aqui. Precisava ver os ipês amarelos e roxos, que belos. As azaléias estão um tanto pálidas. Não sei porque escrevo, não sei porque mando um cartão por mês, já que tenho certeza de que não se importa e talvez nem os leia, e de que lhe importaria notícias minhas? Nosso antigamente cobriu-se de gelo. Dia desses fui a um café onde havia um retrato do Cortázar na parede. Ele e Flanelle, a gata. Pensei em você (não deveria).
V.

Outubro, 74
Olhe que foto: a avenida mais movimentada da cidade. Muitas pessoas. Eu não queria, mas preciso contar, preciso que você saiba que joguei fora meu relógio. De que me serve um relógio no qual o tempo apenas finge que passa? Começou em junho, quando me vi sozinho vendo a chuva, e você não estava comigo. Que posso fazer? Os cafés com creme daqui são os melhores que já provei em toda a minha vida.
V.

Novembro, 74
Não sei se volto. Escrevo para ninguém. E quer saber? Quis provar a mim mesmo que poderia viver sem você, mas penso que ao mesmo tempo você quis me perder. Então, porque não me deixa? Por que sua ausência tão pesada, por que seu cabelo preto, por que suas mãos, as covinhas no rosto pálido, esses olhos enormes e curiosos? Conheci uma pessoa, chama-se Ivanka, é ruiva e parece gostar de mim. Mas ela não me vê como eu realmente sou: essa era você.
V.

Dezembro, 74
A correria de Natal quase me enlouqueceu. Mas não esqueci de ninguém na minha lista de presentes, e com este cartão vai algo que talvez você goste. Espero que goste. Não sei, se fosse antes eu saberia, teria a certeza, mas as pessoas mudam tanto, não é mesmo? Fique descansada: não é Pour Elise. Consegui encontrar uma que não tocasse essa mesma música. Acho que é algo do Chopin. A boneca é bem feitinha.
V.

Janeiro, 75
Feliz ano-novo. Está quente por aqui. Sempre passo em frente a uma casa que tem um jardim que me lembra muito o “nosso”, a mesma disposição dos canteiros, muito parecido mesmo. Quando chove à tarde, penso em você. Ivanka, lembra?, tem sido muito boa para mim. Tem me feito bem estar ao lado dela. Parece que vai cair uma tempestade agora, estou ouvindo os trovões. Ivanka é de ascendência sérvia, mais alta que eu. Sonhei com você. Não sei se deveria dizer, mas é.
V.

Fevereiro, 75
Tenho saudades de todos aí. Os amigos costumam responder meus cartões com outros cartões postais, para que eu não me esqueça da velha cidade. P. me contou que você anda sumida. Não pergunto o porquê; sei que não me responderá, assim como não respondeu antes. Hoje choveu o dia todo e fiquei grudado à janela. A chuva era boa, nos dias em que você me contava histórias sobre as gotas. Boba. Ivanka trabalha na embaixada, não sei se falei. Estamos vivendo juntos.
V.

Março, 75
Ando trabalhando muito, estou cansado. Mas de resto, tudo bem. E como chove! Passei em frente à tal casa cujo jardim é como o “nosso”, a mesma cerca de madeira. Escrevi isso em janeiro. Aconteceu uma coisa engraçada, acho que é estafa: sentei em frente à casa e chorei. Isso foi anteontem. Hoje tudo bem, tudo bem mesmo. Pergunto-me se gostou do presente de natal. Era mesmo Chopin? Talvez eu nunca saiba.
V.

Abril, 75
Hoje terminei de reler o livro que você me deu. Já não chove tanto. Os dias estão ficando longos, acho que este vai ser um daqueles outonos intermináveis. Fiz algumas anotações sobre o livro, devem chegar em breve. Engraçado como não posso separar o livro de você: talvez eu nunca mais o releia, e gosto tanto. Talvez tenha que desistir de Cortázar. Ninguém me fala de você, nas cartas que recebo. São bons amigos, sinto falta. Ivanka pode estar grávida, estou preocupado. Não pelos gastos, nem pela responsabilidade de criar uma criança. As horas não passam e às vezes me pergunto: se passassem, para onde iriam?
V.

Maio, 75
Quase não tenho ânimo para escrever. P. mandou-me um telegrama. Preciso dizer o que sinto? Se estou aqui escrevendo, é porque me ajuda a suportar. De algum modo preciso salvar-me de ti, da tua lembrança; é porque escrever parece me redimir, porque enquanto escrevo quase não penso, e se pensar tenho medo de acabar ficando louco. Ivanka não estava grávida, afinal; mas deixou-me. Nunca a entendi bem, tão alta e forte, diferente de você. Você sim, eu sempre compreendi ou pelo menos busquei compreender. Lindo outono, lindas veredas cobertas de folhas, é triste até as profundezas. Saí do emprego, não quero explicar minha decisão, mas acho que tem a ver com o tempo e a fuga das horas, com o desejo e com o jardim. Meus olhos estão meio anuviados agora. O que importa é não ter medo, agora que você não existe.
V.

Junho, 74
Sabe? É meio bobo isso. Tanto tempo tentando negar o óbvio. Aos poucos, fui aprendendo o que pode ser a angústia. É uma espécie de ferrugem. Ácido, bolor, degeneração. E nada é assim rápido, leva tanto tempo para cristalizar. O gosto de fracasso na boca. Uma pedra. O coração afundando em silêncio. Pressão constante na testa e na nuca. No início é quase sutil, sem maior importância. Mas permanece. Recusa-se a ir embora. Vai aumentando, forçando a passagem com uma forma sombria e inumana, algo que escapou de algum abismo dentro de nós onde costumava se refugiar, e vai subindo, se espalhando sem parar, uma presença autoritária que debilita todas as resistências. Logo assume o comando, e então parece melhor baixar a cabeça, baixar os olhos, entregar os pontos. Melhor se entregar logo no começo e dizer aquela coisa feia, riscar aquele fósforo, comer tudo o que há na geladeira, discar para aquele número de telefone, procurar novamente a gaveta ou o arquivo proibidos para rever as coisas que não deveria nem saber que estão lá. Ir na direção em que sua angústia o arrasta, fazendo a coisa mais insensata, que não deseja fazer, que sabe desde sempre que o deixará deprimido e desmoralizado. Seguir em frente como um prisioneiro de guerra, exausto, assumindo a própria melancolia. A angústia. Velho trem-fantasma obrigatório. Mais velha do que nós e infinitamente orgulhosa. Como uma dor amarela, um vento frio, uma garra lancinante. E então, eu quase grito.

outubro 18, 2007

Amor

Em meu umbral, a mariposa descansa do vôo. Ela não me conhece, e eu não a conheço. Sem pudores, posta-se todos os dias, por volta das seis da tarde, em meu umbral. Nada diz, nem eu. Não é necessário. Pensei em enxotá-la logo na primeira vez em que ela pousou em meu umbral. Porque achei-a feia e marrom demais. Tem olhos nas costas. Temi que voasse, porque em seu vôo, pressenti, seria ainda mais feia. Só que não a enxotei; ela ficou. Isso foi no primeiro dia, em sua primeira visita.

No dia seguinte, não achei que viesse. Meu umbral vazio e negro. Mas, às cinco para as seis, ei-la pousada. Não a vi chegar, nem neste, nem nos dias subseqüentes (jamais falhou em vir). Tampouco a vi partir, nem neste, nem nos dias subseqüentes, e eu não sei para onde vai depois que abandona o meu umbral. Não sei onde passa suas noites, e nem onde o sol a encontra.

É fato que a amo – e é fato que sou amado. Não pude lutar contra isso. Eu a amo quando vem enfeitar, como um laço de carne e asas, o meu digno umbral negro. Vieram contar-me que as mariposas são bruxas que passam as noites fazendo maldades pelo mundo, enfeitiçando homens, roubando-lhes os membros viris e com eles fazendo ninhos nos altos das árvores, em cemitérios abandonados. Mas não posso aceitar tamanha incongruência. Somos assim amantes no silêncio, apenas. Não me toma nada, nem um copo d’água, nem um boa-tarde; nada pede, além de um espaço em meu umbral. E eu deixo que permaneça o tempo que quiser.

Só que as coisas agora mudaram, mudaram para pior, penso eu, porque meus sentimentos estão ficando escuros. Mesmo que fique ao pé do umbral, olhos pregados, ela me escapa com a fugacidade de uma maldição rogada ao vento, os punhos erguidos para o céu. Tenho medo de pensar que, um dia, vou querer aprisioná-la. Espetá-la com um alfinete. Tenho medo porque, aí sim, ela vai ficar feia de verdade. Terei de encará-la, seus olhos reais que presumo cinzentos, seu corpinho delgado que pressinto cor de areia, talvez tenha uma espécie de probóscide...

Agora mesmo a estou olhando, é janeiro. Tem manchas amarelas nas costas, aqueles olhos mentirosos. Ela toda é uma mentira, uma sombra de terror encarnada em meu umbral. Não se move. Ela sabe? O fato é que voa. Eu tremo; voa e faz barulho, não é borboleta e sim mariposa, passa por sobre minha cabeça e tem algo entre as patas, que será? Ovos de aranha, ou um pequeno grilo. Está fugindo, agora sim a vejo sair, o calor a excitou além do normal. Sua casca letárgica se rompeu. Fugiu. Ela sabe. Pensando bem, para quê ficar triste? Foi melhor assim. Terminaria em morte.

Tem uma outra coisa que eu sei: mariposa em meus umbrais, nunca mais.
Ele tem um cão. Uma pena o cão não ter um olho. Ilude-se, o menino, quando diz que tem um cão: é o cão que o tem, sem que ele menino saiba. Não pode saber, é só um menino que não cresce nunca.

Do alto da montanha o menino avista seus domínios. Quando se vangloria de ter, esquece que não tem nada, que só está ali bancando o conquistador porque na verdade aquele pedaço de mundo selvagem, aquela solidão imensa e confortável, permitiu que ele ali estivesse e se instalasse e se arvorasse dono e senhor. O mundo dos meninos é assim: eles querem ter, porque nascem conquistadores de terras e mares e sonhos.

Ele menino observa o lago. Então mergulha, vai fundo, quer viver ali porque este é o lugar, este é o seu instante-espaço e nunca ele menino sentiu-se tão bem quanto ali, nos limites do que chama de “seu mundo”, pertencendo, engolfado pelo prazer imenso de ter algo somente para si, e assim são os meninos como ele.

Quando o sol se põe, ele reluta em voltar para casa. Mas sabe que precisa. Há uma casa e uma rede, e seu cão o espera. Mas ele é corajoso; o vento não o assusta, tampouco o fim da luz. A certeza de que há uma casa, uma rede e um cão o guiam de volta com mão firme, ele menino e seus passos ritmados, indubitáveis, atendendo ao chamado. E o mundo de dentro de casa, o mundo do alpendre e da rede e o cão, tudo isso é o mesmo mundo do lado de fora, das árvores e dos bosques e das águas. Então, ele menino fica contente porque voltar para casa significa muito mais do que voltar para casa: também é nunca ter saído de casa.

Não é preciso ninguém. O lar de um menino é o seu castelo e este castelo em particular é protegido pelas falenas – com elas, não há o que temer. Se ele menino ficar bem quietinho, vai poder ouvir cigarras e vento e a porta que range e as janelas e os pedaços de bambu que se chocam tloc-tloc-tloc-tloc. Tudo isso ele conhece bem. Se está escuro, ele adivinha cada pedra, cada flor, e as reconstrói com detalhes em sua viva imaginação. Desse modo imaginam os meninos: tudo é mais do que real.

Sob a cama do menino não há monstros. E mesmo se houvesse, ora bolas, há o cão. Aconchegado com seus travesseiros, ele reza baixinho e pensa que não existe nada menor do que aquele lugar, porque está dentro dele. Ou então, é dentro dele menino que tem espaço demais. Por haver espaço demais, cabe castelo, lago, cão, rede e bambus que se chocam tloc-tloc-tloc-tloc. Qual será a verdade? Não tem resposta pronta; a resposta tem que vir com o sono. Embalado assim, o menino dorme sorrindo e sonha com castelos e princesas, feudos distantes, cavalos brancos, montanhas a desbravar, conquistas a fazer, a força e a coragem do menino que nos sonhos é homem e voa pelas colinas em busca de mais.
De lembranças

As lembranças mais importantes, Madalena guarda-as todas em uma caixa azul (as outras ficam esparramadas como fantasmas). Vez ou outra Madalena abre a caixa azul e tira de lá determinada lembrança; remove-lhe a poeira, coloca-a no sol. Fica uma tarde inteira olhando para a lembrança que dormita no parapeito da janela, sem desconfiar que a lembrança sonha, ainda que mantenha um dos grandes olhos abertos. Sonha com Madalena. Suspira. Pensa no adiantado da hora e sente grande vontade de voltar à caixa azul. E Madalena, por sua vez (e com muita freqüência), precisa secar com o dedo uma lágrima suja de rímel e pó-de-arroz.
Às vezes sol, mas não necessariamente. Difícil ver lepidópteros, mas quando acontece, é normal que venham falar com Madalena que faz um gesto bobo com as mãos, chamando a borboleta como se fosse um cachorro, ficando muito contente, maravilhada, quando a borboleta finge acudir ao chamado e voa na direção certa, ao que Madalena de pronto se assusta, encolhe-se toda e solta um gritinho, e então acredita que a borboleta se assustou e fugiu, quando na verdade apenas fingiu assustar-se. Madalena não sabe, mas não é ela quem chama e brinca e repele a borboleta, e sim a borboleta quem faz tudo isso com Madalena, uma doce maldade borboleteira com cheiro de verão antigo.