outubro 22, 2007

Partículas

Ensaio

Olhou melhor, ficou pensando: vou? Difícil resolver. Tanta coisa passando pela cabeça. O sol frio, o romantismo das tardes de maio. Vou? Aquela agitação interior, tão conhecida de outros tempos. É certo que tudo retorna, fatalmente. Cuspiu de lado. Cidade pontuada de cinza, uma solidão acre, mastigável. Vou? Não tinha muito tempo mais. Chutou uma pomba. A dor na boca do estômago. Lembrou: desgraça pouca é bobagem. As ruas fedem. Não distinguia rostos. Robert De Niro e Jodie Foster. Não podia ser tão complicado. Vou. Foda-se. Lábios rachados, sabor de vingança dormente. Pólvora nos dedos, pólvora no peito. Tudo vai à merda repentinamente. A morte é a única rota de fuga. Maio, no calendário. Estou indo cruzar meu caminho com o de outro homem como eu e fazer o destino acontecer – não é um pensamento engraçado? Existem coisas que pedem para serem feitas com absoluta urgência. Como, por exemplo, dobrar esquinas até encontrar o homem procurado e disparar contra ele seis tiros, sentir o silêncio do instante em que a barreira é ultrapassada, ouvir o tombo, assistir como se fosse um filme, tremer de medo, correr, guardar a arma quente dentro da calça. Essas coisas que realmente valem a pena quando se está certo, certíssimo.

Sujo

Pobre louca, dizem. Pobrezinha. Arrasta um corpo feio e magro na tarefa indigna da mendicância crônica. Dão-lhe moedas apressadas. Seguem tampando o nariz. Nas dobras das roupas imundas da mendiga, restos de antigamente. Parasitas, nódoas. Puxa os próprios cabelos, uma massa dura de fios escuros. Passa o poeta, e a chama em pensamento de monturo vivo. Passa o senhor guarda, gesticula para que saia do caminho. Passa a criança, tem medo da louca. Cloaca da cidade. Moleques atiram-lhe pedras, ela parece não se importar. É doida, dizem. Tanta coisa dizem por aí, estranho tipo de indiferença. Não é uma mulher, exatamente, diria alguém. Não é um ser humano, exatamente, diria um cínico qualquer. Passa o cão, fareja – e fica. Pelo menos ela tem um cão, dizem os transeuntes acabrunhados diante do quadro da miséria absoluta. Pelo menos, filosofa um sábio, pelo menos alguém a assistirá morrer, caso o animalzinho sobreviva à fome e ao posto de ‘cão de mendigo’. Não durará muito, é cheia de chagas, é velha e louca, em breve morrerá, pensam as pessoas que detestam incômodos. É podre por completo, murmuram todos.

[Quando os dias passam e as chuvas geladas do inverno chegam, ela finalmente morre, silenciosamente, sem um ai. O cão a fareja e uiva. É incrivelmente desgraçado agora.]

Resto


Não sobra muita coisa, apenas uma caixa de discos de vinil. Uma pena. Ele sentado na calçada com uma caixa de discos de vinil por companhia, que cena cretina. Pensa que é bom que não chova agora porque vão molhar meus discos, caralho. Pensa e pensa. Vai correr para onde? Resposta nada enigmática: você se fodeu. A retórica machuca, às vezes.

A barriga ronca, naturalmente, e tudo o que há na carteira é:
- um real e setenta e dois centavos
- uma foto meio amassada de uma garota grávida
- dois vales-transporte amarfanhados
- uma imagem de Santo Expedito
- um número de telefone (sem nome)
- um cartão telefônico (três créditos)

Um gato se aproxima e ganha uma carícia triste. Cláudio quer chorar. A vida nunca pareceu tão cheia de bosta quanto ali na calçada, sem casa, sem comida. Chuva filha da puta. Ele tira a blusa e cobre a caixa dos discos. Depois pensa melhor e corre com ela até o bar, senta-se nos degraus da entrada, a caixa do lado. Fica vendo a chuva cair de novo – há dias e dias que só chove. Tudo foi embora. A vitrola também. Puxa um disco da caixa, olha a capa, a barriga ronca sem dó. Ouve o barulho da criançada alheia a tudo, chapinhando nas enormes poças de água barrenta. A mãe no abrigo, o pai no abrigo, os irmãos no abrigo, mas ele – ele – não iria nem fodendo.

Entrou no bar, chegou junto ao orelhão:
- Reinaldo, tô indo pra sua casa, velho.
- Pra quê?
- Minha casa caiu, velho. Tô indo. Mas fica frio, vou arrumar um trampo, tem um camarada daqui da vila que me prometeu já uma parada aí. Então eu fico na tua casa uns dias só, daí saio fora, só pra eu ter onde dormir, né, e comer alguma coisa...
- Mas aqui, porra? Aqui você sabe, tem eu e mais cinco...
- Favor de irmão, Reinaldo, porra, vai negar isso pro teu irmãozinho, velho? Só uns dias, logo eu tô saindo fora, e você acha que eu vou querer ficar na tua casa pra sempre?
(silêncio)
- Beleza. Cola aí.
- Valeeeu, irmão!

Era alguma coisa. A chuva apertava. Cláudio pensava num bom prato de comida quente enquanto juntava a caixa de discos de vinil, a mochila com as roupas sobreviventes, a sacola de pertences, memórias. Era até que bastante coisa. Até sorriu, ficou tão feliz quanto alguém poderia ficar, tão feliz que sorriu grande, abertamente. Alguma esperança.

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