outubro 28, 2007

Certezas

Não seria a última lágrima, certo que estava a ponto de pedir perdão, humilhar-se, arrastar-se aos pés dela, proporcionar um espetáculo de auto-flagelação emocional, abandonando a honra, o amor a si mesmo, o orgulho. Certo que o faria, tão certo como as manhãs ao lado dela, como os almoços, os jantares, os cafés; certo como a realidade atroz de um tempo passado, encolhido nas dobras do espírito, acanhado, longe feito um horizonte ao contrário.

Tamanha dor exigia expiação.

Certa era a indiferença. Ela não lhe prestava atenção. Não o olhava, nem mesmo com o canto dos enormes olhos cor de terra. Não acenava, não sorria. Levava à boca miúda o garfo, aos lábios o copo. Espiava o vazio, distraída. Ajeitava o cabelo. Usava o guardanapo. Abria a bolsa, pegava notas. Levantava-se. Ia ao caixa. Pagava. Saía. Como era possível? Nada – ou menos.

Ele, naturalmente, sofria.

Quantas vezes levantara-se, pagara seu almoço apressado, e punha-se a segui-la pela tarde preguiçosa? Incontáveis. Ele abandonara os calendários, inúteis, desnecessários. Esperava. Quisera muitas vezes gritar. Desesperava. Tornava a esperar. Ia aos poucos desistindo. Ela entrava em um escritório. Ele plantava-se do lado de fora. Fumava alguns cigarros. As pernas doíam; ele, então, dava uma volta. Mas sempre retornava.

Cinco da tarde, ela saía do escritório. Rosto cansado. Abria a bolsa, apanhava um cigarro, acendia. Passava rapidamente, mas não tão rapidamente que não fosse possível a ele aspirar um pouco daquele perfume, quente e desmaiado. Ela entrava no café da esquina.

Ele entrava também. Como podia, a cadela, ignorá-lo assim?

Ela pedia o café cremoso, ficava a cismar, olhando o tempo, a rua. Descansando do dia de trabalho. Ele pedia um café. Ela acabava o café. Ele acabava o café. Ela saía. Ele saía.

Fria. Distante. Nada.

A cada novo dia, ele pensava que havia chegado o momento de desfazer aquele mal-estar, de quebrar o gelo que havia se estabelecido entre eles, de tentar dar a volta por cima, enganar o passado, implorar, pedir. Rasgar-se inteiro. E a cada final de tarde, ele a via entrar no ônibus e sufocava, no fundo do peito, um soluço de derrota.

Aquilo era preciso terminar. Era preciso, era preciso.

De volta ao ponto de partida. Certo que o faria.

Ela sentara-se, com seu prato. Meio dia e trinta e dois minutos. Ele aproximou-se. Ela o olhou, séria. Franziu de leve a testa delicada. Afastou dos olhos uma mecha de cabelo. Ele murmurou um pedido de desculpas. Deu as costas. Saiu do restaurante. Derrotado.

Lamentou não ter tido a coragem necessária. Lamentou e lamentou, e se sentiu pior que um cão de rua. Foi para casa. Não a esperaria hoje. Precisava colocar a mente em ordem, precisava de um plano. De tantas coisas precisava.

Não havia necessidade de um plano, afinal. Era apenas chegar e atirar na cara dela tudo aquilo pelo qual ela o fizera passar: o sofrimento, as angústias, as noites não dormidas, o aperto no estômago, o cansaço de olhar para ela, o castigo de não receber nenhuma atenção especial – como podia ser tão fria? – e, sobretudo, por fazê-lo sentir-se um imbecil. O orgulho de volta. Pedir perdão, arrastar-se, humilhar-se? Não.

Não mesmo.

Hora do almoço, dia seguinte, ele com os olhos vermelhos de choro e insônia, ela fresca, descansada, leve e serena. Injusto. Ele tentaria novamente, ou melhor: cumpriria o acordo feito consigo próprio. Desta vez, era certo, não haveria falhas.

Como no dia anterior, ela sentara-se à mesa com seu prato cheio, seu suco de laranja, pendurando a bolsa na cadeira. Manejava os talheres quando ele aproximou-se. Ela franziu a testa – de novo, mas com uma certa agudeza ausente no dia anterior – e abriu a boca. Ele não lhe deu tempo de falar. Começou. “Você não tem coração nem mesmo olha pra mim que fico te vigiando o dia todo esperando que tenha pelo menos algum respeito pelo que tivemos no passado que pelo menos não seja tão mal-educada que ao menos me desse uma chance de conversar de ser amável de consertar o que ficou quebrado você faz questão de ser assim orgulhosa mas esquece de quantas coisas fiz por você de quantas lágrimas e alegrias esquece de tudo com tanta facilidade realmente acho que você não merece ser amada por ninguém criatura insensível os cafés da manhã na cama e todo o resto e você que.”

Ela perdeu a cor. Franziu ainda mais a testa, crispou os olhos, tensa, violenta. Levantou-se. E disse, cheia de indignação:“Afinal de contas, quem-diabos-é-você? Fugiu do hospício, é?”.

Saiu sem pagar.

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