outubro 22, 2007

Correspondência
(Eu & Gil Brandão)

Julho, 74
Como pode ver, cheguei vivo. Estamos distantes agora, e será uma bênção para mim não vê-la mais. Por favor, não me leve a mal: não é a indiferença que me move, mas sim o desejo que me escraviza, ainda. Pode dizer que fugi, e será verdade; mas nunca poderá dizer que escapei.

V.

Agosto, 74
Olá, como vai você? Terá recebido o cartão que mandei mês passado? Se não o recebeu, tanto melhor. Escrevo este para dizer que estou bem, que a cidade é muito interessante. As pessoas aqui são bonitas. Gostaria de poder dizer-lhe que não há, dentre as mulheres daqui, nenhuma que seja melhor do que você – mas não posso. Acho que finalmente estou esquecendo seu rosto, porque hoje pela manhã tentei me lembrar dele e os contornos desapareceram da minha mente.
V.

Setembro, 74
As flores chegaram, aos poucos, por aqui. Precisava ver os ipês amarelos e roxos, que belos. As azaléias estão um tanto pálidas. Não sei porque escrevo, não sei porque mando um cartão por mês, já que tenho certeza de que não se importa e talvez nem os leia, e de que lhe importaria notícias minhas? Nosso antigamente cobriu-se de gelo. Dia desses fui a um café onde havia um retrato do Cortázar na parede. Ele e Flanelle, a gata. Pensei em você (não deveria).
V.

Outubro, 74
Olhe que foto: a avenida mais movimentada da cidade. Muitas pessoas. Eu não queria, mas preciso contar, preciso que você saiba que joguei fora meu relógio. De que me serve um relógio no qual o tempo apenas finge que passa? Começou em junho, quando me vi sozinho vendo a chuva, e você não estava comigo. Que posso fazer? Os cafés com creme daqui são os melhores que já provei em toda a minha vida.
V.

Novembro, 74
Não sei se volto. Escrevo para ninguém. E quer saber? Quis provar a mim mesmo que poderia viver sem você, mas penso que ao mesmo tempo você quis me perder. Então, porque não me deixa? Por que sua ausência tão pesada, por que seu cabelo preto, por que suas mãos, as covinhas no rosto pálido, esses olhos enormes e curiosos? Conheci uma pessoa, chama-se Ivanka, é ruiva e parece gostar de mim. Mas ela não me vê como eu realmente sou: essa era você.
V.

Dezembro, 74
A correria de Natal quase me enlouqueceu. Mas não esqueci de ninguém na minha lista de presentes, e com este cartão vai algo que talvez você goste. Espero que goste. Não sei, se fosse antes eu saberia, teria a certeza, mas as pessoas mudam tanto, não é mesmo? Fique descansada: não é Pour Elise. Consegui encontrar uma que não tocasse essa mesma música. Acho que é algo do Chopin. A boneca é bem feitinha.
V.

Janeiro, 75
Feliz ano-novo. Está quente por aqui. Sempre passo em frente a uma casa que tem um jardim que me lembra muito o “nosso”, a mesma disposição dos canteiros, muito parecido mesmo. Quando chove à tarde, penso em você. Ivanka, lembra?, tem sido muito boa para mim. Tem me feito bem estar ao lado dela. Parece que vai cair uma tempestade agora, estou ouvindo os trovões. Ivanka é de ascendência sérvia, mais alta que eu. Sonhei com você. Não sei se deveria dizer, mas é.
V.

Fevereiro, 75
Tenho saudades de todos aí. Os amigos costumam responder meus cartões com outros cartões postais, para que eu não me esqueça da velha cidade. P. me contou que você anda sumida. Não pergunto o porquê; sei que não me responderá, assim como não respondeu antes. Hoje choveu o dia todo e fiquei grudado à janela. A chuva era boa, nos dias em que você me contava histórias sobre as gotas. Boba. Ivanka trabalha na embaixada, não sei se falei. Estamos vivendo juntos.
V.

Março, 75
Ando trabalhando muito, estou cansado. Mas de resto, tudo bem. E como chove! Passei em frente à tal casa cujo jardim é como o “nosso”, a mesma cerca de madeira. Escrevi isso em janeiro. Aconteceu uma coisa engraçada, acho que é estafa: sentei em frente à casa e chorei. Isso foi anteontem. Hoje tudo bem, tudo bem mesmo. Pergunto-me se gostou do presente de natal. Era mesmo Chopin? Talvez eu nunca saiba.
V.

Abril, 75
Hoje terminei de reler o livro que você me deu. Já não chove tanto. Os dias estão ficando longos, acho que este vai ser um daqueles outonos intermináveis. Fiz algumas anotações sobre o livro, devem chegar em breve. Engraçado como não posso separar o livro de você: talvez eu nunca mais o releia, e gosto tanto. Talvez tenha que desistir de Cortázar. Ninguém me fala de você, nas cartas que recebo. São bons amigos, sinto falta. Ivanka pode estar grávida, estou preocupado. Não pelos gastos, nem pela responsabilidade de criar uma criança. As horas não passam e às vezes me pergunto: se passassem, para onde iriam?
V.

Maio, 75
Quase não tenho ânimo para escrever. P. mandou-me um telegrama. Preciso dizer o que sinto? Se estou aqui escrevendo, é porque me ajuda a suportar. De algum modo preciso salvar-me de ti, da tua lembrança; é porque escrever parece me redimir, porque enquanto escrevo quase não penso, e se pensar tenho medo de acabar ficando louco. Ivanka não estava grávida, afinal; mas deixou-me. Nunca a entendi bem, tão alta e forte, diferente de você. Você sim, eu sempre compreendi ou pelo menos busquei compreender. Lindo outono, lindas veredas cobertas de folhas, é triste até as profundezas. Saí do emprego, não quero explicar minha decisão, mas acho que tem a ver com o tempo e a fuga das horas, com o desejo e com o jardim. Meus olhos estão meio anuviados agora. O que importa é não ter medo, agora que você não existe.
V.

Junho, 74
Sabe? É meio bobo isso. Tanto tempo tentando negar o óbvio. Aos poucos, fui aprendendo o que pode ser a angústia. É uma espécie de ferrugem. Ácido, bolor, degeneração. E nada é assim rápido, leva tanto tempo para cristalizar. O gosto de fracasso na boca. Uma pedra. O coração afundando em silêncio. Pressão constante na testa e na nuca. No início é quase sutil, sem maior importância. Mas permanece. Recusa-se a ir embora. Vai aumentando, forçando a passagem com uma forma sombria e inumana, algo que escapou de algum abismo dentro de nós onde costumava se refugiar, e vai subindo, se espalhando sem parar, uma presença autoritária que debilita todas as resistências. Logo assume o comando, e então parece melhor baixar a cabeça, baixar os olhos, entregar os pontos. Melhor se entregar logo no começo e dizer aquela coisa feia, riscar aquele fósforo, comer tudo o que há na geladeira, discar para aquele número de telefone, procurar novamente a gaveta ou o arquivo proibidos para rever as coisas que não deveria nem saber que estão lá. Ir na direção em que sua angústia o arrasta, fazendo a coisa mais insensata, que não deseja fazer, que sabe desde sempre que o deixará deprimido e desmoralizado. Seguir em frente como um prisioneiro de guerra, exausto, assumindo a própria melancolia. A angústia. Velho trem-fantasma obrigatório. Mais velha do que nós e infinitamente orgulhosa. Como uma dor amarela, um vento frio, uma garra lancinante. E então, eu quase grito.

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