outubro 31, 2007

[Sem título]

É noite, e meu coração não me permite dormir.
A chuva mais uma vez lava a cidade e graciosamente perdoa seus pecados.
É noite e a cidade dos espelhos fenece sob o silêncio após a grande confusão:
O dia em que o sol brilhou, resplandesceu e tingiu de dourado cada centímetro de aço polido.
O dia em que o aço polido tornou-se tão musical quanto sinos de vidro - e soou no ar tépido de verão.
O dia em que a mornidão do vento trouxe consigo a languidez oriental dos gatos.
O dia em que os gatos comeram morcegos, e nada mais.
O dia em que os gatos, o dia em que as botas, o dia em que os espelhos
Retiniram todos em festa, comemorando a cidade em chamas, porque houveram chamas e houve confusão na cidade dos espelhos.
Quando chegou o final do dia, foi revelada enfim a verdade: os espelhos mentem ao contrário.
(Mas a questão, puramente estética e dialética, foi deixada de lado: a cidade é uma festa e os rojões confundem-se com o barulho dos sinos de vidro.)
O sol não se põe.

***

Alguém caminha pela cidade com a certeza de que a possui: ela, a cidade, uma babilônia apocalíptica a seduzir aqueles que em alguma ocasião puderam entrever, por momentos, um de seus pequenos pedaços brancos e pulsantes de concreto.

***

Subitamente, o sol se põe - porque precisa.

***

Então, a cidade funciona como um dia após o outro, deixando-se ocultar sob grossos cobertores de aleivosias e mediocridades para despertar em seguida, mais bela e livre do que antes, sob os eternos auspícios do astro -rei.
A lua confunde o coração dos homens e turva-lhes a visão. De novo, o silêncio de vidro pintado, a textura de porcelana a correr pelos dedos, a língua e a boca secas: ânsia e desalento.


É noite, e de novo a cidade impura.



outubro 29, 2007

Coisas que acontecem (sim, acontecem coisas)

Tem coisa que começa sem que a gente note, tão devagar que só notamos que alguma coisa está acontecendo quando nos apontam, nos dizem com todas as letras “algo está acontecendo com você”, dedos preocupados e duros a nos mostrar na cara onde é que está o erro. Posto que dificilmente notemos a coisa quando nasce, bem escondida como os filhotes dos peixes em um aquário, não temos muita responsabilidade sobre ela. Penso que não existe nenhum outro momento mais irresponsável na vida de uma pessoa do que este no qual as coisas estão apenas começando.

Constantemente Rubens me dizia “olha, tem alguma coisa”, com aquele ar misterioso das pessoas que não são propriamente inteligentes e se deixam intrigar por banalidades. Quando Rubens ficava quieto por muito tempo eu sabia que lá vinha, ele carregava a expressão e soltava seu “olha...” que eu fingia não ouvir; dava de ombros e virava para o canto, tornava a dormir sem pensar em nada.

Mas um dia tive que prestar atenção ao que ele dizia, até me censurei por não prestar atenção quase nunca, mas naquele dia a lembrança de Rubens me dizendo “olha...” veio com força, como se fosse o cenário ideal para o que estava acontecendo, e eu enfim começava a notar que algo acontecia de fato. Apesar de ter finalmente notado, mantive o ceticismo, porque não era fácil aceitar que aquilo estivesse acontecendo e que fosse o prenúncio de algo maior, muito ruim.

Hoje, olhando para aquele dia, fica um pouco difícil saber exatamente por onde a coisa começou, mas fazendo um esforço de memória (porque Rubens não está e não pode me ajudar) acho que foi a janela batendo, uma ventania destas que antecedem tempestades. Foi, sim, a janela batendo, o barulho, nunca suportei barulho e por isso nem filhos nem bichos, meus nervos sensíveis e o barulho da janela me sacudiu, bem me lembro, estava bordando borboletas em uma toalha amarela e usava a linha azul para fazer uma asa.

Então, a janela bateu, me sacudindo, como já disse, e por certo este foi o começo e dali até o instante em que me pus a pensar no que Rubens dizia, “olha, tem alguma coisa”, parece que foram semanas ou meses mas não, essas peças que a cabeça da gente nos prega quando as coisas que acontecem são muito elásticas e cheias de razões ou de não-razões, não entendo direito porquê as coisas aconteceram mas elas tinham que acontecer porque aconteceram, entende? O tempo é o diabo, me perturba um pouco, não consigo situar, eu não andava olhando para o relógio naquela tarde da tempestade e então que diferença faz, se dias, anos, horas?

Sei que a chuva caiu forte, janeiro doze, recordo até do cheiro da água batendo na terra, mas não do horário, decerto à tarde porque no verão as tempestades acontecem à tarde. Sim, agora sei que sentia a coisa que iria acontecer, chegando de manso, sim, eu sabia, por que não dizer? Hoje sei que sabia, mas naquele momento não sabia que sabia, não sabia de nada porque mal conseguia enxergar meu bordado, uma angústia pesada subindo pela garganta e então foi que espetei a agulha do bordado no dedo, acho que este foi o segundo pedacinho do quebra-cabeça dos fatos que estavam para acontecer e nessa altura (hoje, só hoje sei) eram inevitáveis.

Nesse dia em especial Rubens não falara comigo a manhã toda e ficara consertando o carro na garagem. Eu entendia o porquê do silêncio; a noite anterior e a briga feia, eu também não estava de conversa, mas não era só isso que me subia pela garganta, não, havia outra coisa subindo, um pouco mais dolorosa. O caso é que permaneci no meu lugar bordando e não almoçamos, me fiz de morta e quando a janela bateu espetei o dedo na agulha e levantei-me do sofá para procurar um band-aid.

Sabe quando as coisas acontecem de uma vez? Foi assim depois no final daquela tarde, a chuva já tinha passado, Rubens com toda certeza ficara embaixo do carro, a garagem coberta, ouvindo o estalar das gotas sobre a cobertura metálica e pensando que algo, algo acontecia ou estava para acontecer. No final daquela tarde foi que as coisas finalmente aconteceram e Rubens só poderia estar se referindo a isso, porque não havia outra coisa e não houve, para Rubens não houve realmente mais nada depois daquilo.

Não achei o band-aid, mas encontrei uns objetos tão estranhos na gaveta dele que na hora não pensei em nada, acho que perdi os reflexos, a capacidade de reagir. Era estranho que eu não reagisse e voltasse para o sofá, o dedo embrulhado num pedaço de pano e o sangue que não parava de escorrer, que lugar mais sangrento é a ponta de um dedo jovem! Talvez por isso eu não saiba dizer no relógio quanto tempo se passou; porque fiquei preocupada com o meu dedo e toda a minha atenção se voltou para o sangue que ia manchando o pano, uma gotinha aqui, outra ali.

Não demorou muito, acho. Sou saudável e o sangue parou de escorrer, mas ficou uma dorzinha aguda, um incômodo que eu trataria de esquecer porque só agora me lembro dele, fazendo um esforço grande. Fiquei andando pela casa e abri as janelas, chovia horrores, afinal um calorão o dia todo, minha mão suava enquanto eu bordava as borboletas, disso me recordo bem porque a agulha escorregava a todo instante. Aquela dor que subia, tão diferente da dorzinha na ponta do dedo, ia agora avolumando-se, criando contornos, transformando-se em um monstro de bestiário a sacudir minha embarcação em algum oceano distante dali, como se eu tivesse deixado de existir para ser outra pessoa, alguém longe que navegava em uma embarcação e cujo medo ali no meu sofá transformava-se em um monstro a sacudir a embarcação correspondente da minha outra pessoa correspondente.

Senti meu rosto avermelhar e arder. Não parecia fazer sentido, e a asa da borboleta no pano amarelo a perder a forma, pouco se me dava se estava ficando torta, eu não era boa bordadeira, nunca fui. E por tudo isso acho que houve um plano, como se Deus ou alguém invisível estivesse desenhando esse mapa porque não parecia lógico que assim fosse. Mas as coisas acontecem sem que a gente possa prever, apenas porque precisam acontecer, porque são o próximo ato no espetáculo e o diretor desta peça é tremendamente severo com seus atores, então não teve jeito e saí da sala, atravessei a cozinha, invadi o quintal. A chuva caía inclemente, o cheiro bom da terra refrescada, um verdadeiro alívio.

Sempre gostei de tomar chuva, e há anos não fazia isso. Gostoso. Caminhei lentamente pela grama, as gotas fortes, pesadas, estalando nas minhas costas; subia um vapor da grama, das pedras do jardim, do carro. Rubens estava sob o carro, pude ver as pernas dele apenas, joelho e panturrilha. Eu sabia o que fazer ali, naquele instante houve como que uma ordem, o ponto no teatro a nos dar a deixa quando nos desconcentramos e acabamos nos perdendo no texto e na ação a seguir, o desconcerto peculiar logo emendado pelo acerto que nos acalma, tudo tão rápido que o público sequer nota, só nós os atores depois da peça enquanto fumamos um cigarro na coxia e rimos dos enganos cometidos durante o espetáculo.

“Rubens”, chamei, e meu marido resmungou debaixo do carro, fez um som que não pude definir. “Rubens, por favor, venha até aqui, preciso que você veja uma coisa”, eu pedi, e então ele começou a se mover para sair. A chuva caía forte, lembro-me claramente de que estava descalça, e Rubens também estava descalço, é certo que estava, disso eu sei porque Rubens de pôs de pé e ao dar os primeiros passos apressados escorregou na mancha de óleo que vazava do motor do carro inerte na garagem. Eu não me movi, e por isso digo que sempre há um diretor a nos guiar, não me movi enquanto olhava curiosa para saber se óleo de misturava com sangue. Não misturava; acho que porque a chuva ia lavando o sangue e o óleo ao mesmo tempo, lavando o grito que perdurou por um segundo apenas, as roupas de Rubens estavam coladas ao corpo e um filete de sangue escorria da sua cabeça para o gramado.

Fiquei olhando por muito tempo, e daí soube que não tinha culpa, as coisas são o que são, engraçado que Rubens soubesse disso antes mesmo da janela que bateu com a força do vento, o prenúncio da tempestade. Entrei em casa, tomei um banho quente, tornei a abrir a gaveta, depois a fechei, e agora só me recordo de um homem me dizendo que não havia nada dentro da gaveta, que não podia ser, não podia ser, e me olhava com olhos maus durante todo o tempo em que permaneci sendo interrogada, disso pouco me lembro além do fato de haver uma gaveta vazia e fechada em algum dia, e em algum dia também uma embarcação cruzando um oceano qualquer.

outubro 28, 2007

Certezas

Não seria a última lágrima, certo que estava a ponto de pedir perdão, humilhar-se, arrastar-se aos pés dela, proporcionar um espetáculo de auto-flagelação emocional, abandonando a honra, o amor a si mesmo, o orgulho. Certo que o faria, tão certo como as manhãs ao lado dela, como os almoços, os jantares, os cafés; certo como a realidade atroz de um tempo passado, encolhido nas dobras do espírito, acanhado, longe feito um horizonte ao contrário.

Tamanha dor exigia expiação.

Certa era a indiferença. Ela não lhe prestava atenção. Não o olhava, nem mesmo com o canto dos enormes olhos cor de terra. Não acenava, não sorria. Levava à boca miúda o garfo, aos lábios o copo. Espiava o vazio, distraída. Ajeitava o cabelo. Usava o guardanapo. Abria a bolsa, pegava notas. Levantava-se. Ia ao caixa. Pagava. Saía. Como era possível? Nada – ou menos.

Ele, naturalmente, sofria.

Quantas vezes levantara-se, pagara seu almoço apressado, e punha-se a segui-la pela tarde preguiçosa? Incontáveis. Ele abandonara os calendários, inúteis, desnecessários. Esperava. Quisera muitas vezes gritar. Desesperava. Tornava a esperar. Ia aos poucos desistindo. Ela entrava em um escritório. Ele plantava-se do lado de fora. Fumava alguns cigarros. As pernas doíam; ele, então, dava uma volta. Mas sempre retornava.

Cinco da tarde, ela saía do escritório. Rosto cansado. Abria a bolsa, apanhava um cigarro, acendia. Passava rapidamente, mas não tão rapidamente que não fosse possível a ele aspirar um pouco daquele perfume, quente e desmaiado. Ela entrava no café da esquina.

Ele entrava também. Como podia, a cadela, ignorá-lo assim?

Ela pedia o café cremoso, ficava a cismar, olhando o tempo, a rua. Descansando do dia de trabalho. Ele pedia um café. Ela acabava o café. Ele acabava o café. Ela saía. Ele saía.

Fria. Distante. Nada.

A cada novo dia, ele pensava que havia chegado o momento de desfazer aquele mal-estar, de quebrar o gelo que havia se estabelecido entre eles, de tentar dar a volta por cima, enganar o passado, implorar, pedir. Rasgar-se inteiro. E a cada final de tarde, ele a via entrar no ônibus e sufocava, no fundo do peito, um soluço de derrota.

Aquilo era preciso terminar. Era preciso, era preciso.

De volta ao ponto de partida. Certo que o faria.

Ela sentara-se, com seu prato. Meio dia e trinta e dois minutos. Ele aproximou-se. Ela o olhou, séria. Franziu de leve a testa delicada. Afastou dos olhos uma mecha de cabelo. Ele murmurou um pedido de desculpas. Deu as costas. Saiu do restaurante. Derrotado.

Lamentou não ter tido a coragem necessária. Lamentou e lamentou, e se sentiu pior que um cão de rua. Foi para casa. Não a esperaria hoje. Precisava colocar a mente em ordem, precisava de um plano. De tantas coisas precisava.

Não havia necessidade de um plano, afinal. Era apenas chegar e atirar na cara dela tudo aquilo pelo qual ela o fizera passar: o sofrimento, as angústias, as noites não dormidas, o aperto no estômago, o cansaço de olhar para ela, o castigo de não receber nenhuma atenção especial – como podia ser tão fria? – e, sobretudo, por fazê-lo sentir-se um imbecil. O orgulho de volta. Pedir perdão, arrastar-se, humilhar-se? Não.

Não mesmo.

Hora do almoço, dia seguinte, ele com os olhos vermelhos de choro e insônia, ela fresca, descansada, leve e serena. Injusto. Ele tentaria novamente, ou melhor: cumpriria o acordo feito consigo próprio. Desta vez, era certo, não haveria falhas.

Como no dia anterior, ela sentara-se à mesa com seu prato cheio, seu suco de laranja, pendurando a bolsa na cadeira. Manejava os talheres quando ele aproximou-se. Ela franziu a testa – de novo, mas com uma certa agudeza ausente no dia anterior – e abriu a boca. Ele não lhe deu tempo de falar. Começou. “Você não tem coração nem mesmo olha pra mim que fico te vigiando o dia todo esperando que tenha pelo menos algum respeito pelo que tivemos no passado que pelo menos não seja tão mal-educada que ao menos me desse uma chance de conversar de ser amável de consertar o que ficou quebrado você faz questão de ser assim orgulhosa mas esquece de quantas coisas fiz por você de quantas lágrimas e alegrias esquece de tudo com tanta facilidade realmente acho que você não merece ser amada por ninguém criatura insensível os cafés da manhã na cama e todo o resto e você que.”

Ela perdeu a cor. Franziu ainda mais a testa, crispou os olhos, tensa, violenta. Levantou-se. E disse, cheia de indignação:“Afinal de contas, quem-diabos-é-você? Fugiu do hospício, é?”.

Saiu sem pagar.

outubro 23, 2007

O dobre dos sinos

A doença não era novidade, há muito: apenas um modo de ser, uma invenção do corpo. Pregava os olhos avermelhados no teto, buscava sinais. Sempre a febre, acocorada em um canto do quarto, esperando o final da tarde, a luz partindo, o dia em fuga rápida. Havia um consolo somente, que era lembrar (espantoso que conseguisse) de um tempo anterior às febres e à morfina. Dias de verdade, afinal.

Como um sonho mal sonhado, vinham as sombras habitar o negrume entre o cérebro e os olhos, intermináveis. Coisas mortas como igrejas ou estradas distantes, mortas como pássaros que ninguém vê, como folhas, corações partidos, telefones mudos, tiros na cabeça. Uma lâmpada triste pende do teto e moscas copulam no fio. Do líquido amarelo-esverdeado que escorre do ânus sem cessar, desprende-se aquele cheiro. Nos escombros das horas, nada, e possivelmente nunca.

As sombras, o tempo passado. A véspera. Sua mente se enchia de sol e de novo havia incontáveis minutos a redesenhar, como estrelas, areia, gotas. Um rio a transpor, vento e sons, um tamborzinho esquecido no jardim, mãos sujas, borboletas azuis, aranhas fazendo teia, roupa no varal, beijo na boca, pau duro, tortas de limão, contas a pagar, o cartão de ponto, maus poemas, bons poemas, a janela emperrada, álcool, projetos abandonados, cigarros pós-coito, calendários, papéis e canetas, música, o limbo das coisas. Saudade? Sim. De qualquer evento, rosto, bobagem, cicatriz. Febre.

Merda.

De súbito, a cama, as feridas feias nas costas, as entranhas meio comidas pelo câncer: o hoje. Sentia nas pernas o líquido escorrendo. Para sempre. Era a dor. Pé ante pé, a mãe, velhíssima, entrou no quarto com um lenço tapando o nariz e a boca. Perguntou ao filho se queria algo. A voz abafada de lenço e de profunda tristeza.

- Morfina, mãe.
- Só isso?
- Só.

outubro 22, 2007

Partículas

Ensaio

Olhou melhor, ficou pensando: vou? Difícil resolver. Tanta coisa passando pela cabeça. O sol frio, o romantismo das tardes de maio. Vou? Aquela agitação interior, tão conhecida de outros tempos. É certo que tudo retorna, fatalmente. Cuspiu de lado. Cidade pontuada de cinza, uma solidão acre, mastigável. Vou? Não tinha muito tempo mais. Chutou uma pomba. A dor na boca do estômago. Lembrou: desgraça pouca é bobagem. As ruas fedem. Não distinguia rostos. Robert De Niro e Jodie Foster. Não podia ser tão complicado. Vou. Foda-se. Lábios rachados, sabor de vingança dormente. Pólvora nos dedos, pólvora no peito. Tudo vai à merda repentinamente. A morte é a única rota de fuga. Maio, no calendário. Estou indo cruzar meu caminho com o de outro homem como eu e fazer o destino acontecer – não é um pensamento engraçado? Existem coisas que pedem para serem feitas com absoluta urgência. Como, por exemplo, dobrar esquinas até encontrar o homem procurado e disparar contra ele seis tiros, sentir o silêncio do instante em que a barreira é ultrapassada, ouvir o tombo, assistir como se fosse um filme, tremer de medo, correr, guardar a arma quente dentro da calça. Essas coisas que realmente valem a pena quando se está certo, certíssimo.

Sujo

Pobre louca, dizem. Pobrezinha. Arrasta um corpo feio e magro na tarefa indigna da mendicância crônica. Dão-lhe moedas apressadas. Seguem tampando o nariz. Nas dobras das roupas imundas da mendiga, restos de antigamente. Parasitas, nódoas. Puxa os próprios cabelos, uma massa dura de fios escuros. Passa o poeta, e a chama em pensamento de monturo vivo. Passa o senhor guarda, gesticula para que saia do caminho. Passa a criança, tem medo da louca. Cloaca da cidade. Moleques atiram-lhe pedras, ela parece não se importar. É doida, dizem. Tanta coisa dizem por aí, estranho tipo de indiferença. Não é uma mulher, exatamente, diria alguém. Não é um ser humano, exatamente, diria um cínico qualquer. Passa o cão, fareja – e fica. Pelo menos ela tem um cão, dizem os transeuntes acabrunhados diante do quadro da miséria absoluta. Pelo menos, filosofa um sábio, pelo menos alguém a assistirá morrer, caso o animalzinho sobreviva à fome e ao posto de ‘cão de mendigo’. Não durará muito, é cheia de chagas, é velha e louca, em breve morrerá, pensam as pessoas que detestam incômodos. É podre por completo, murmuram todos.

[Quando os dias passam e as chuvas geladas do inverno chegam, ela finalmente morre, silenciosamente, sem um ai. O cão a fareja e uiva. É incrivelmente desgraçado agora.]

Resto


Não sobra muita coisa, apenas uma caixa de discos de vinil. Uma pena. Ele sentado na calçada com uma caixa de discos de vinil por companhia, que cena cretina. Pensa que é bom que não chova agora porque vão molhar meus discos, caralho. Pensa e pensa. Vai correr para onde? Resposta nada enigmática: você se fodeu. A retórica machuca, às vezes.

A barriga ronca, naturalmente, e tudo o que há na carteira é:
- um real e setenta e dois centavos
- uma foto meio amassada de uma garota grávida
- dois vales-transporte amarfanhados
- uma imagem de Santo Expedito
- um número de telefone (sem nome)
- um cartão telefônico (três créditos)

Um gato se aproxima e ganha uma carícia triste. Cláudio quer chorar. A vida nunca pareceu tão cheia de bosta quanto ali na calçada, sem casa, sem comida. Chuva filha da puta. Ele tira a blusa e cobre a caixa dos discos. Depois pensa melhor e corre com ela até o bar, senta-se nos degraus da entrada, a caixa do lado. Fica vendo a chuva cair de novo – há dias e dias que só chove. Tudo foi embora. A vitrola também. Puxa um disco da caixa, olha a capa, a barriga ronca sem dó. Ouve o barulho da criançada alheia a tudo, chapinhando nas enormes poças de água barrenta. A mãe no abrigo, o pai no abrigo, os irmãos no abrigo, mas ele – ele – não iria nem fodendo.

Entrou no bar, chegou junto ao orelhão:
- Reinaldo, tô indo pra sua casa, velho.
- Pra quê?
- Minha casa caiu, velho. Tô indo. Mas fica frio, vou arrumar um trampo, tem um camarada daqui da vila que me prometeu já uma parada aí. Então eu fico na tua casa uns dias só, daí saio fora, só pra eu ter onde dormir, né, e comer alguma coisa...
- Mas aqui, porra? Aqui você sabe, tem eu e mais cinco...
- Favor de irmão, Reinaldo, porra, vai negar isso pro teu irmãozinho, velho? Só uns dias, logo eu tô saindo fora, e você acha que eu vou querer ficar na tua casa pra sempre?
(silêncio)
- Beleza. Cola aí.
- Valeeeu, irmão!

Era alguma coisa. A chuva apertava. Cláudio pensava num bom prato de comida quente enquanto juntava a caixa de discos de vinil, a mochila com as roupas sobreviventes, a sacola de pertences, memórias. Era até que bastante coisa. Até sorriu, ficou tão feliz quanto alguém poderia ficar, tão feliz que sorriu grande, abertamente. Alguma esperança.

Lençóis
(Eu & Alexandre Beanes)

Se coloco meus lençóis no pequeno varal do amor
É para que sequem ao vento
Ou que molhem na brisa orvalhada da madrugada.
E hoje caio no esquecimento.

Deixo de lado todas as lições, abandono regras, confortos de salas conhecidas, de leitos camaradas. É quase como esquecer também do medo, sabê-lo distante, uma chama tremeluzindo do outro lado da minha vida e que não chega até mim porque não quero, porque não posso.

Abraço o que não entendo, arvoro-me na única certeza, que é a da queda iminente, sem pensar em fugir do destino, este monstro de luz e sombra que insiste em se colocar adiante, sempre à frente dos meus passos vacilantes. Pois hoje sou mulher que corre ao encontro dele, deixando para trás a menina que se agarra aos cobertores e anseia pela chegada do dia.

Olhando pela janela vejo a noite quieta, insondável. A alma do mundo em absoluto silêncio. Tudo à espera de me ver passar: as estrelas pararam de cair, as flores dormem nos quintais. Gatos deixam de amar nos telhados, cessam os lamentos felinos; cães não latem, homens não gritam, carros estacionam – a morte dos motores. Em suspenso, a respiração da vida. Só ouço meu coração, e este bate frágil, oculto, adormecendo.

Então sei o que preciso fazer. Sei, em cada centímetro do meu corpo. Conheço a missão sagrada do amor, e tanto a conheço que entendo, com perfeita clareza, cada minuto em que a vida me concede o silêncio: estou aqui, esta é a janela, mais adiante a existência.
Correspondência
(Eu & Gil Brandão)

Julho, 74
Como pode ver, cheguei vivo. Estamos distantes agora, e será uma bênção para mim não vê-la mais. Por favor, não me leve a mal: não é a indiferença que me move, mas sim o desejo que me escraviza, ainda. Pode dizer que fugi, e será verdade; mas nunca poderá dizer que escapei.

V.

Agosto, 74
Olá, como vai você? Terá recebido o cartão que mandei mês passado? Se não o recebeu, tanto melhor. Escrevo este para dizer que estou bem, que a cidade é muito interessante. As pessoas aqui são bonitas. Gostaria de poder dizer-lhe que não há, dentre as mulheres daqui, nenhuma que seja melhor do que você – mas não posso. Acho que finalmente estou esquecendo seu rosto, porque hoje pela manhã tentei me lembrar dele e os contornos desapareceram da minha mente.
V.

Setembro, 74
As flores chegaram, aos poucos, por aqui. Precisava ver os ipês amarelos e roxos, que belos. As azaléias estão um tanto pálidas. Não sei porque escrevo, não sei porque mando um cartão por mês, já que tenho certeza de que não se importa e talvez nem os leia, e de que lhe importaria notícias minhas? Nosso antigamente cobriu-se de gelo. Dia desses fui a um café onde havia um retrato do Cortázar na parede. Ele e Flanelle, a gata. Pensei em você (não deveria).
V.

Outubro, 74
Olhe que foto: a avenida mais movimentada da cidade. Muitas pessoas. Eu não queria, mas preciso contar, preciso que você saiba que joguei fora meu relógio. De que me serve um relógio no qual o tempo apenas finge que passa? Começou em junho, quando me vi sozinho vendo a chuva, e você não estava comigo. Que posso fazer? Os cafés com creme daqui são os melhores que já provei em toda a minha vida.
V.

Novembro, 74
Não sei se volto. Escrevo para ninguém. E quer saber? Quis provar a mim mesmo que poderia viver sem você, mas penso que ao mesmo tempo você quis me perder. Então, porque não me deixa? Por que sua ausência tão pesada, por que seu cabelo preto, por que suas mãos, as covinhas no rosto pálido, esses olhos enormes e curiosos? Conheci uma pessoa, chama-se Ivanka, é ruiva e parece gostar de mim. Mas ela não me vê como eu realmente sou: essa era você.
V.

Dezembro, 74
A correria de Natal quase me enlouqueceu. Mas não esqueci de ninguém na minha lista de presentes, e com este cartão vai algo que talvez você goste. Espero que goste. Não sei, se fosse antes eu saberia, teria a certeza, mas as pessoas mudam tanto, não é mesmo? Fique descansada: não é Pour Elise. Consegui encontrar uma que não tocasse essa mesma música. Acho que é algo do Chopin. A boneca é bem feitinha.
V.

Janeiro, 75
Feliz ano-novo. Está quente por aqui. Sempre passo em frente a uma casa que tem um jardim que me lembra muito o “nosso”, a mesma disposição dos canteiros, muito parecido mesmo. Quando chove à tarde, penso em você. Ivanka, lembra?, tem sido muito boa para mim. Tem me feito bem estar ao lado dela. Parece que vai cair uma tempestade agora, estou ouvindo os trovões. Ivanka é de ascendência sérvia, mais alta que eu. Sonhei com você. Não sei se deveria dizer, mas é.
V.

Fevereiro, 75
Tenho saudades de todos aí. Os amigos costumam responder meus cartões com outros cartões postais, para que eu não me esqueça da velha cidade. P. me contou que você anda sumida. Não pergunto o porquê; sei que não me responderá, assim como não respondeu antes. Hoje choveu o dia todo e fiquei grudado à janela. A chuva era boa, nos dias em que você me contava histórias sobre as gotas. Boba. Ivanka trabalha na embaixada, não sei se falei. Estamos vivendo juntos.
V.

Março, 75
Ando trabalhando muito, estou cansado. Mas de resto, tudo bem. E como chove! Passei em frente à tal casa cujo jardim é como o “nosso”, a mesma cerca de madeira. Escrevi isso em janeiro. Aconteceu uma coisa engraçada, acho que é estafa: sentei em frente à casa e chorei. Isso foi anteontem. Hoje tudo bem, tudo bem mesmo. Pergunto-me se gostou do presente de natal. Era mesmo Chopin? Talvez eu nunca saiba.
V.

Abril, 75
Hoje terminei de reler o livro que você me deu. Já não chove tanto. Os dias estão ficando longos, acho que este vai ser um daqueles outonos intermináveis. Fiz algumas anotações sobre o livro, devem chegar em breve. Engraçado como não posso separar o livro de você: talvez eu nunca mais o releia, e gosto tanto. Talvez tenha que desistir de Cortázar. Ninguém me fala de você, nas cartas que recebo. São bons amigos, sinto falta. Ivanka pode estar grávida, estou preocupado. Não pelos gastos, nem pela responsabilidade de criar uma criança. As horas não passam e às vezes me pergunto: se passassem, para onde iriam?
V.

Maio, 75
Quase não tenho ânimo para escrever. P. mandou-me um telegrama. Preciso dizer o que sinto? Se estou aqui escrevendo, é porque me ajuda a suportar. De algum modo preciso salvar-me de ti, da tua lembrança; é porque escrever parece me redimir, porque enquanto escrevo quase não penso, e se pensar tenho medo de acabar ficando louco. Ivanka não estava grávida, afinal; mas deixou-me. Nunca a entendi bem, tão alta e forte, diferente de você. Você sim, eu sempre compreendi ou pelo menos busquei compreender. Lindo outono, lindas veredas cobertas de folhas, é triste até as profundezas. Saí do emprego, não quero explicar minha decisão, mas acho que tem a ver com o tempo e a fuga das horas, com o desejo e com o jardim. Meus olhos estão meio anuviados agora. O que importa é não ter medo, agora que você não existe.
V.

Junho, 74
Sabe? É meio bobo isso. Tanto tempo tentando negar o óbvio. Aos poucos, fui aprendendo o que pode ser a angústia. É uma espécie de ferrugem. Ácido, bolor, degeneração. E nada é assim rápido, leva tanto tempo para cristalizar. O gosto de fracasso na boca. Uma pedra. O coração afundando em silêncio. Pressão constante na testa e na nuca. No início é quase sutil, sem maior importância. Mas permanece. Recusa-se a ir embora. Vai aumentando, forçando a passagem com uma forma sombria e inumana, algo que escapou de algum abismo dentro de nós onde costumava se refugiar, e vai subindo, se espalhando sem parar, uma presença autoritária que debilita todas as resistências. Logo assume o comando, e então parece melhor baixar a cabeça, baixar os olhos, entregar os pontos. Melhor se entregar logo no começo e dizer aquela coisa feia, riscar aquele fósforo, comer tudo o que há na geladeira, discar para aquele número de telefone, procurar novamente a gaveta ou o arquivo proibidos para rever as coisas que não deveria nem saber que estão lá. Ir na direção em que sua angústia o arrasta, fazendo a coisa mais insensata, que não deseja fazer, que sabe desde sempre que o deixará deprimido e desmoralizado. Seguir em frente como um prisioneiro de guerra, exausto, assumindo a própria melancolia. A angústia. Velho trem-fantasma obrigatório. Mais velha do que nós e infinitamente orgulhosa. Como uma dor amarela, um vento frio, uma garra lancinante. E então, eu quase grito.

outubro 18, 2007

Amor

Em meu umbral, a mariposa descansa do vôo. Ela não me conhece, e eu não a conheço. Sem pudores, posta-se todos os dias, por volta das seis da tarde, em meu umbral. Nada diz, nem eu. Não é necessário. Pensei em enxotá-la logo na primeira vez em que ela pousou em meu umbral. Porque achei-a feia e marrom demais. Tem olhos nas costas. Temi que voasse, porque em seu vôo, pressenti, seria ainda mais feia. Só que não a enxotei; ela ficou. Isso foi no primeiro dia, em sua primeira visita.

No dia seguinte, não achei que viesse. Meu umbral vazio e negro. Mas, às cinco para as seis, ei-la pousada. Não a vi chegar, nem neste, nem nos dias subseqüentes (jamais falhou em vir). Tampouco a vi partir, nem neste, nem nos dias subseqüentes, e eu não sei para onde vai depois que abandona o meu umbral. Não sei onde passa suas noites, e nem onde o sol a encontra.

É fato que a amo – e é fato que sou amado. Não pude lutar contra isso. Eu a amo quando vem enfeitar, como um laço de carne e asas, o meu digno umbral negro. Vieram contar-me que as mariposas são bruxas que passam as noites fazendo maldades pelo mundo, enfeitiçando homens, roubando-lhes os membros viris e com eles fazendo ninhos nos altos das árvores, em cemitérios abandonados. Mas não posso aceitar tamanha incongruência. Somos assim amantes no silêncio, apenas. Não me toma nada, nem um copo d’água, nem um boa-tarde; nada pede, além de um espaço em meu umbral. E eu deixo que permaneça o tempo que quiser.

Só que as coisas agora mudaram, mudaram para pior, penso eu, porque meus sentimentos estão ficando escuros. Mesmo que fique ao pé do umbral, olhos pregados, ela me escapa com a fugacidade de uma maldição rogada ao vento, os punhos erguidos para o céu. Tenho medo de pensar que, um dia, vou querer aprisioná-la. Espetá-la com um alfinete. Tenho medo porque, aí sim, ela vai ficar feia de verdade. Terei de encará-la, seus olhos reais que presumo cinzentos, seu corpinho delgado que pressinto cor de areia, talvez tenha uma espécie de probóscide...

Agora mesmo a estou olhando, é janeiro. Tem manchas amarelas nas costas, aqueles olhos mentirosos. Ela toda é uma mentira, uma sombra de terror encarnada em meu umbral. Não se move. Ela sabe? O fato é que voa. Eu tremo; voa e faz barulho, não é borboleta e sim mariposa, passa por sobre minha cabeça e tem algo entre as patas, que será? Ovos de aranha, ou um pequeno grilo. Está fugindo, agora sim a vejo sair, o calor a excitou além do normal. Sua casca letárgica se rompeu. Fugiu. Ela sabe. Pensando bem, para quê ficar triste? Foi melhor assim. Terminaria em morte.

Tem uma outra coisa que eu sei: mariposa em meus umbrais, nunca mais.
Ele tem um cão. Uma pena o cão não ter um olho. Ilude-se, o menino, quando diz que tem um cão: é o cão que o tem, sem que ele menino saiba. Não pode saber, é só um menino que não cresce nunca.

Do alto da montanha o menino avista seus domínios. Quando se vangloria de ter, esquece que não tem nada, que só está ali bancando o conquistador porque na verdade aquele pedaço de mundo selvagem, aquela solidão imensa e confortável, permitiu que ele ali estivesse e se instalasse e se arvorasse dono e senhor. O mundo dos meninos é assim: eles querem ter, porque nascem conquistadores de terras e mares e sonhos.

Ele menino observa o lago. Então mergulha, vai fundo, quer viver ali porque este é o lugar, este é o seu instante-espaço e nunca ele menino sentiu-se tão bem quanto ali, nos limites do que chama de “seu mundo”, pertencendo, engolfado pelo prazer imenso de ter algo somente para si, e assim são os meninos como ele.

Quando o sol se põe, ele reluta em voltar para casa. Mas sabe que precisa. Há uma casa e uma rede, e seu cão o espera. Mas ele é corajoso; o vento não o assusta, tampouco o fim da luz. A certeza de que há uma casa, uma rede e um cão o guiam de volta com mão firme, ele menino e seus passos ritmados, indubitáveis, atendendo ao chamado. E o mundo de dentro de casa, o mundo do alpendre e da rede e o cão, tudo isso é o mesmo mundo do lado de fora, das árvores e dos bosques e das águas. Então, ele menino fica contente porque voltar para casa significa muito mais do que voltar para casa: também é nunca ter saído de casa.

Não é preciso ninguém. O lar de um menino é o seu castelo e este castelo em particular é protegido pelas falenas – com elas, não há o que temer. Se ele menino ficar bem quietinho, vai poder ouvir cigarras e vento e a porta que range e as janelas e os pedaços de bambu que se chocam tloc-tloc-tloc-tloc. Tudo isso ele conhece bem. Se está escuro, ele adivinha cada pedra, cada flor, e as reconstrói com detalhes em sua viva imaginação. Desse modo imaginam os meninos: tudo é mais do que real.

Sob a cama do menino não há monstros. E mesmo se houvesse, ora bolas, há o cão. Aconchegado com seus travesseiros, ele reza baixinho e pensa que não existe nada menor do que aquele lugar, porque está dentro dele. Ou então, é dentro dele menino que tem espaço demais. Por haver espaço demais, cabe castelo, lago, cão, rede e bambus que se chocam tloc-tloc-tloc-tloc. Qual será a verdade? Não tem resposta pronta; a resposta tem que vir com o sono. Embalado assim, o menino dorme sorrindo e sonha com castelos e princesas, feudos distantes, cavalos brancos, montanhas a desbravar, conquistas a fazer, a força e a coragem do menino que nos sonhos é homem e voa pelas colinas em busca de mais.
De lembranças

As lembranças mais importantes, Madalena guarda-as todas em uma caixa azul (as outras ficam esparramadas como fantasmas). Vez ou outra Madalena abre a caixa azul e tira de lá determinada lembrança; remove-lhe a poeira, coloca-a no sol. Fica uma tarde inteira olhando para a lembrança que dormita no parapeito da janela, sem desconfiar que a lembrança sonha, ainda que mantenha um dos grandes olhos abertos. Sonha com Madalena. Suspira. Pensa no adiantado da hora e sente grande vontade de voltar à caixa azul. E Madalena, por sua vez (e com muita freqüência), precisa secar com o dedo uma lágrima suja de rímel e pó-de-arroz.
Às vezes sol, mas não necessariamente. Difícil ver lepidópteros, mas quando acontece, é normal que venham falar com Madalena que faz um gesto bobo com as mãos, chamando a borboleta como se fosse um cachorro, ficando muito contente, maravilhada, quando a borboleta finge acudir ao chamado e voa na direção certa, ao que Madalena de pronto se assusta, encolhe-se toda e solta um gritinho, e então acredita que a borboleta se assustou e fugiu, quando na verdade apenas fingiu assustar-se. Madalena não sabe, mas não é ela quem chama e brinca e repele a borboleta, e sim a borboleta quem faz tudo isso com Madalena, uma doce maldade borboleteira com cheiro de verão antigo.