outubro 18, 2007

Amor

Em meu umbral, a mariposa descansa do vôo. Ela não me conhece, e eu não a conheço. Sem pudores, posta-se todos os dias, por volta das seis da tarde, em meu umbral. Nada diz, nem eu. Não é necessário. Pensei em enxotá-la logo na primeira vez em que ela pousou em meu umbral. Porque achei-a feia e marrom demais. Tem olhos nas costas. Temi que voasse, porque em seu vôo, pressenti, seria ainda mais feia. Só que não a enxotei; ela ficou. Isso foi no primeiro dia, em sua primeira visita.

No dia seguinte, não achei que viesse. Meu umbral vazio e negro. Mas, às cinco para as seis, ei-la pousada. Não a vi chegar, nem neste, nem nos dias subseqüentes (jamais falhou em vir). Tampouco a vi partir, nem neste, nem nos dias subseqüentes, e eu não sei para onde vai depois que abandona o meu umbral. Não sei onde passa suas noites, e nem onde o sol a encontra.

É fato que a amo – e é fato que sou amado. Não pude lutar contra isso. Eu a amo quando vem enfeitar, como um laço de carne e asas, o meu digno umbral negro. Vieram contar-me que as mariposas são bruxas que passam as noites fazendo maldades pelo mundo, enfeitiçando homens, roubando-lhes os membros viris e com eles fazendo ninhos nos altos das árvores, em cemitérios abandonados. Mas não posso aceitar tamanha incongruência. Somos assim amantes no silêncio, apenas. Não me toma nada, nem um copo d’água, nem um boa-tarde; nada pede, além de um espaço em meu umbral. E eu deixo que permaneça o tempo que quiser.

Só que as coisas agora mudaram, mudaram para pior, penso eu, porque meus sentimentos estão ficando escuros. Mesmo que fique ao pé do umbral, olhos pregados, ela me escapa com a fugacidade de uma maldição rogada ao vento, os punhos erguidos para o céu. Tenho medo de pensar que, um dia, vou querer aprisioná-la. Espetá-la com um alfinete. Tenho medo porque, aí sim, ela vai ficar feia de verdade. Terei de encará-la, seus olhos reais que presumo cinzentos, seu corpinho delgado que pressinto cor de areia, talvez tenha uma espécie de probóscide...

Agora mesmo a estou olhando, é janeiro. Tem manchas amarelas nas costas, aqueles olhos mentirosos. Ela toda é uma mentira, uma sombra de terror encarnada em meu umbral. Não se move. Ela sabe? O fato é que voa. Eu tremo; voa e faz barulho, não é borboleta e sim mariposa, passa por sobre minha cabeça e tem algo entre as patas, que será? Ovos de aranha, ou um pequeno grilo. Está fugindo, agora sim a vejo sair, o calor a excitou além do normal. Sua casca letárgica se rompeu. Fugiu. Ela sabe. Pensando bem, para quê ficar triste? Foi melhor assim. Terminaria em morte.

Tem uma outra coisa que eu sei: mariposa em meus umbrais, nunca mais.

4 comentários:

Peterson Queiroz disse...

penso em quase-existências. em flagrâncias: instantâneos imediatos carregados de aroma e drama. pequena cápsula de acontecências e desdobraduras de algo estorietazinhas ao mesmo tempo concretas e improváveis. nessas é q uma mariposa pousa. repousa? sempre. moto-contínuo. deja-vú isso antes. pequenas asas oblongas a carregar de tudo. acabaram me levando embora tb. para sempre...

Júlio Castro disse...

bah! conta outra! ela nunca foi uma mariposa só.

Anônimo disse...

puxa... que bonito... tem photo bonita esse texto - imagino.

=)

Anônimo disse...

Tudo muito lindo por aqui.